A «Catedral do Papel» do escritor Manuel Ribeiro (1878-1941) e a recuperação do Gótico na I República Portuguesa 
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2004-01-01
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A obra de Manuel Ribeiro (1878-1941) é o testemunho literário de um percurso que parte de uma posição anarco-sindicalista até chegar ao cristianismo. Este autor defende uma estética da medievalidade e o seu valor simbólico, inserido no contexto de uma herança cultural da época contemporânea, ligada ao resgate de um gosto e de um modelo civilizacional inspirado numa Idade Média cristã, tendo como objectivo uma restauração católica. É nesta perspectiva que estudámos o caso deste escritor português, enquanto representante do movimento de «construtores» de catedrais simbólicas erigidas em caracteres. O livro “A Catedral” é uma descrição de emoções estéticas e todo o entusiasmo desenvolvido ao longo da obra em torno do restauro da Sé é, também, o entusiasmo em encontrar as suas origens mais remotas. Restaurar, significa não só libertar a igreja de todos os acrescentos e adulterações ocorridos ao longo dos tempos, mas também a beleza primitiva do monumento, o mesmo é dizer restaurar uma Igreja mais evangélica.
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RIBEIRO, José Alberto – A «Catedral do Papel» do escritor Manuel Ribeiro (1878-1941) e a recuperação do Gótico na I República Portuguesa. Lusitania Sacra. Lisboa. ISSN 0076-1508. 2ª S. 16 (2004) 179-202
0076-1508
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O presente artigo tem como base a dissertação de mestrado por nós
apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2002,
cujo objecto de estudo foi a vertente estética presente na obra literária de
Manuel Ribeiro (1878-1941), partindo da análise do livro A Catedral
(1919) – cuja acção é passada numa Sé de Lisboa imaginada e que se res-
taura e renova em 1919 –, e noutras duas obras da sua denominada trilogia
social: O Deserto (1922) e A Ressurreição (1923) 1. É nesta perspectiva
que estudámos o caso deste escritor português, enquanto representante do
movimento de «construtores» de catedrais simbólicas.
A obra de Manuel Ribeiro é o testemunho literário de um percurso pessoal que parte de uma posição anarco-sindicalista até chegar ao cristia- nismo. O autor revela um conhecimento profundo sobre conceitos estéticos muito «fin de siécle» e um gosto evidente pela arte medieval, sobretudo o Gótico. Pelo que, este autor defende uma estética da medievalidade e o seu valor simbólico, inserido no contexto de uma herança cultural da época contemporânea, ligada ao resgate de um gosto e de um modelo civiliza- cional inspirado numa Idade Média cristã, tendo como objectivo uma res- tauração católica.
* Mestre em Arte, Património e Restauro pela Faculdade de Letras de Lisboa. Docente no Departamento de Estudos Europeus na mesma Faculdade. Técnico do IPPAR.
1 JoséAlberto RIBEIRO, A Catedral de Papel – O escritor Manuel Ribeiro (1878- -1941): Um Esteta da Medievalidade e da Espiritualidade Cristã, Dissertação de Mestrado em Arte, Património e Restauro apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002.
A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941) E A RECUPERAÇÃO
DO GÓTICO NA I REPÚBLICA PORTUGUESA
JOSÉ ALBERTO RIBEIRO *
LUSITANIA SACRA, 2ª série, 16 (2004) 179-202
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Para a compreensão do esteta torna-se necessário analisar outros aspec- tos relacionados com o seu pensamento político e conceitos artísticos, para os quais preconiza uma renovação. O livro utilizado, A Catedral, é uma fonte de especial interesse para uma análise política e religiosa dos inícios do século XX, com informações férteis por parte do autor neste sentido.
Através do pensamento dos teóricos nacionais, ao longo do século XIX, podemos entender melhor como é que se implementou um “novo” gosto e um “novo” olhar para a Idade Média 2. Do académico Cyrillo Volkmar Machado, a quem a arte gótica provocava horror, a um jovem Almeida Garrett que reconhecia propriedades únicas à arquitectura gótica nas funções de templo cristão, a Alexandre Herculano, primeiro grande defensor dos monumentos góticos e da catedral enquanto monumento da nação, a Ramalho Ortigão, legítimo herdeiro deste último na teorização sobre património artístico e monumentos medievais portugueses, defi- nindo o gótico como a arte da proporção, encontramos todo um edifício teórico sobre o qual se constrói esse novo olhar do mundo medieval. Em Portugal, ao longo do século XIX a teorização do gótico é sobretudo apro- priada pelo universo dos autores do liberalismo e entendida como forma de justificação da especificidade da identidade portuguesa. Antes de mais, a ideia do gótico encerra duas questões essenciais ao período que então se vivia: por um lado, uma apropriação ideológica deste estilo enquanto refe- rente do período de consolidação do espaço territorial português, com uma utilização historiográfica de valorização dos mitos, heróis e edifícios de valor simbólico nacional 3; por outro lado, a necessidade da reutilização
2 No âmbito dos estudos dedicados à historiografia sobre o património histórico português destacamos: Maria João NETO, A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1929-1960, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 3 vol., Lisboa, 1996.; IDEM, Memória, Propaganda e Poder. O Restauro dos Monumentos Nacionais (1929-1960), Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001; Nuno ROSMANINHO, A Historiografia Artística Portuguesa de Raczynsk i ao Dealbar do Estado Novo (1846-1935), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea de Portugal, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1993; Lúcia ROSAS, A Arquitectura Religiosa Medieval. Património e Restauro (1835-1928), Dissertação de Doutoramento em História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995; Paulo RODRIGUES, Património, Identidade e História. O Valor e o Significado dos Monumentos Nacionais no Portugal de Oitocentos, Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa, 1998.
3 Ver Ernesto Castro LEAL, Nação e Nacionalismos, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, relativamente à questão da criação de heróis nacionais no período contemporâ-
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dos edifícios religiosos, sobretudo de origem medieval, abandonados e expropriados, para os quais importava definir uma utilização futura e, sobretudo, conservar.
É neste contexto que podemos compreender melhor a herança intelec- tual de que Manuel Ribeiro é legatário, afirmando-se enquanto autor de um cenário medieval carregado de simbologia cristã e nacionalista.
Manuel Ribeiro – uma conversão mística pela estética
A obra de Manuel Ribeiro demonstra de uma forma peculiar o cami- nho percorrido por um anarco-sindicalista, ateu que se converte ao cristia- nismo, que Igreja o cativou e o que é que na religião o converteu. Este autor surge como uma resposta militante do catolicismo às questões que o mundo moderno e industrializado colocava, com destaque para o pensa- mento do Papa Leão XIII sobre a questão social e da encíclica Rerum Novarum (1891) 4. Foi a sociedade fracturada com inúmeras desigualdades que primeiro criou o revolucionário, depois o revolucionário descreditado e por fim o eterno militante que, pela palavra, procura ajudar numa nova revolução, uma revolução cristã. Manuel Ribeiro é um escritor convertido que, de trabalhador dos Caminhos de Ferro Portugueses e membro funda- dor do Partido Comunista Português, chega à comunidade católica Era Nova e, por fim, a conservador da Torre do Tombo.
As questões que os teóricos portugueses debatem neste período pas- saram também pelo clero nacional, que responde à situação de decadência do património artístico com a ideia conjunta da necessidade de uma mili- tância, tendo em vista uma restauração católica. A Igreja mobiliza-se e aparecerem as primeiras opiniões “concertadas” acerca da situação artís- tica nacional. Acresce ainda o facto de que, em finais do século XIX, com a encíclica Rerum Novarum – que constitui um momento importante no relacionamento da Igreja Católica com as sociedades modernas em torno da esfera social e em resposta às alterações sociais – é reforçada a ideia subjacente de uma restauração religiosa da sociedade. É neste contexto que muitos teóricos da Igreja portuguesa, verdadeiros herdeiros de
neo e a sua ligação simbólica com determinados monumentos. 4 Cf. António Matos FERREIRA, “Questions autour de la répercussion au
Portugal (1891-1911) de l’encyclique Rerum Novarum”, Rerum Novarum. Ecriture, con- tenu et réception d’une encyclique, Actes du colloque international organisé para l’Ecole française de Rome et le Greco n.º 2 du CNRS (Rome, 18-20 avril 1991),
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Chateaubriand, vão defender uma recuperação do cristianismo e das quali- dades estéticas de uma arte verdadeiramente pura e cristã, tal como fora o gótico. Um restauro medieval simbolizava um restauro católico e a res- tauração de um tempo em que o cristianismo era o único referencial civili- zacional.
É neste quadro social, político e religioso que surge Manuel Ribeiro, num percurso algo insólito que o leva de uma posição anarco-sindicalista à conversão ao catolicismo pela estética. Nesta perspectiva, poderemos dizer que é A Catedral que o faz cristão.
A figura de Manuel Ribeiro é um testemunho literário de um activista e intelectual que faz um percurso ideológico que o leva de uma posição anarco-sindicalista até o mundo do catolicismo. A historiografia tem-se dedicado a este escritor sobretudo do ponto vista da crítica literária 5 ou, mais raramente, no âmbito ideológico 6, esquecendo uma das suas facetas mais interessantes: a de esteta 7.
Desde cedo, Manuel Ribeiro mostrou-se defensor das classes operá- rias e começou a ser notado pelos seus escritos reivindicativos publicados em jornais dos quais era colaborador: O Sindicalista, A Batalha, ou A Bandeira Vermelha, jornal de inspiração bolchevista onde foi director durante algum tempo.
Em 1920, o facto de ter colaborado numa greve feita pelos ferroviários leva-o a conhecer a prisão do Limoeiro durante um mês e ao consequente
Collection de l’Ecole Française de Rome n.º 232, Palais Farnèse, 1997. 5 Vejam-se como obras de referência: Óscar LOPES, e António José SARAIVA,
História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1982, p. 1068; SARAIVA, António José, História da Literatura Portuguesa – Século XIX- XX, Braga, Editora Pax, 1985, p. 417 e LANÇA-COELHO, “«ABatalha nas Sombras». Um caso de Nomadismo e uma digressão por Beja do fim do século XIX”, Rodapé – Rev ista da Biblioteca Municipal de Beja, n. º 5, Beja, Verão- 2001, pp. 64-67.
6 Neste domínio ressaltamos o trabalho com um maior levantamento de todas as obras escritas e traduzidas de Manuel Ribeiro, feito numa perspectiva essencialmente de âmbito teológico, veja-se: Carlos ANTUNES, Manuel Ribeiro , Trabalho de Licenciatura, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1998.
7 Os únicos estudos, do nosso conhecimento, dedicados às sensibilidades estéti- cas de Manuel Ribeiro, nomeadamente ao restauro arquitectónico, são os de: Maria João NETO, op. cit. , 1996, pp. 527-529; Maria João NETO, “Os Restauros da Catedral de Lisboa à luz da Mentalidade do Tempo”, Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In Memoriam, vol. II, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 131-141; e Patrícia MONTEIRO, “«ACatedral» de Manuel Ribeiro – Uma obra reflexo das teorias de restauro dos tempos da Primeira República”, 8º Relatório de Progresso sobre o
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despedimento. Todavia, este período marca também o início do sucesso da carreira de Manuel Ribeiro enquanto escritor, após a edição do romance A Catedral, considerado um êxito na época que contou com inúmeras reedi- ções. Este livro será o primeiro de uma trilogia, que incluirá ainda O Deserto e A Ressurreição. A actividade literária intensificou-se a partir de então, tor- nando-se mesmo a principal fonte de rendimentos de Manuel Ribeiro.
Após 1932 trabalhou na Biblioteca Nacional e como conservador na Torre do Tombo. Faleceu com 67 anos, em Lisboa, a 27 de Novembro de 1941.
Os «Construtores» de «Catedrais de Papel» e de uma cultura estética da medievalidade
Os literatos que se dedicaram à utilização de monumentos medievais para ilustração e enredo das suas obras, sobretudo a partir do romantismo, ajudaram a criar um sentimento de afectividade para com este património. Através da descrição de um grande de número de obras esquecidas, em grande parte porque filtradas por um gosto de raiz clássico até então insti- tuído, estes monumentos tornam-se partilhados colectivamente. Passam a ser tidos como uma riqueza comum a qualquer povo que reclame para sua herança uma aventura colectiva na constituição da nação, tal como uma árvore genealógica heróica, à imagem da constituição dos antigos reinos medievais europeus. Neste sentido, Marc Fumaroli 8 refere-se quer a Chateaubriand quer a Baudelaire, autores dos termos «homem moderno» e «homem novo», como homens atormentados na procura da sua própria história, turbulenta e perdida, em cujo pensamento surge a ideia de patri- mónio como um elemento reparador de identidade.
O interesse pela Idade Média, desprezada pelos racionalistas do século XVIII 9, é desenvolvido pelos criadores românticos que a tornam numa das suas principais atracções. O gosto que os românticos encontram pelo irracional, pelas forças obscuras, pelo sonho, o sobrenatural, e as cores vivas do imaginário, determina assim que a Idade Média se trans- forme numa fonte quase inesgotável de modelos para inspiração artística.
Programa de Estudos Integrados do Edifício da Sé de Lisboa, Protocolo IPPAR-FLL-IST, Lisboa, Outubro de 1999, pp. 65-77.
8 Para uma síntese sobre a história literária do património em França, dos sécu- los XVIII e XIX, veja-se: Marc FUMAROLI, “Jalons pour une histoire littéraire du patri- moine”, Actes des Entretiens du Patrimoine, dir. Pierre Nora, Paris, Fayard, 1997, p. 113.
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Surge então a ideia de uma Idade Média tenebrosa, modelo que triunfa por volta de 1830 em parte graças ao esforço e talento de escritores como Vítor Hugo.
Podemos questionar porque é que o romantismo ressuscitou desta maneira contraditória e complexa a Idade Média. Que figuras mitológicas é que foram valorizadas e quais foram os «lieux de mémoire» deliberada- mente escolhidos? Em que sentido a historiografia utiliza esta Idade Média em termos culturais, políticos, religiosos e sociais? Parte destas respostas podemos encontrá-las na pitoresca produção historiográfica de Michelet ou nas obras literárias de Vítor Hugo ou de Joris-Karl Huysmans.
Mais do que uma obra arquitectónica, a catedral é um manifesto impresso, um pensamento escrito em pedra que Hugo transforma no registo principal da humanidade. A ideia subjacente é a de ser possível erguer um edifício sólido baseado nas ideias deste «Hugoth», o «livro gra- nítico» dos registos humanos, como que se de uma metáfora de um museu de imagens se tratasse. O conceito venceu e estava definitivamente lan- çado o conceito romântico das «cathédrales de poches» 10.
A Catedral de Manuel Ribeiro – um restauro idealizado para a Sé de Lisboa
O escritor Manuel Ribeiro revela n’A Catedral um gosto pela arte medieval indiscutível, que o nos permite perceber algumas das suas fontes de inspiração e influências, com destaque para dois autores: Hugo e Huysmans. O livro sobre a catedral, podemos dizê-lo, trata-se de uma obra de cariz romântico na senda da «hugolatria» provocada por Notre-Dame de Paris. Em relação a este último, são claros os paralelos entre dois amores impossíveis e a valorização de um edifício medieval com vida própria, embora com fins ideológicos diferentes. O Luciano de Manuel Ribeiro, a determinada passagem do romance, é mesmo comparado ao Frolo da cate- dral parisiense, quando os padres da Sé se viram contra o arquitecto 11.
Manuel Ribeiro é um esteta sensível à arte cristã medieval: à arquitec- tura e à liturgia monástica. Durante a guerra, sem actividade sindicalista,
9 Sobre o gosto pelo gótico e o retorno à natureza ao longo do século XVIII veja--se: A. O. LOVEJOY, e Michel BARIDON, Le Gothique des Lumières, Brionne, Gérard Monfort Éditeur, 1991.
10 Ségolène LE MEN, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard romanti-
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levava os operários a visitar igrejas. O próprio Ribeiro começou a fre- quentar a Sé de Lisboa e a assistir aos ofícios litúrgicos. Era o apelo do belo. A Catedral é uma descrição de emoções estéticas. O entusiasmo pela possibilidade de restaurar a Sé é, também, o de encontrar as suas origens mais remotas. Restaurar é libertar a Igreja de todos os acrescentos e adul- terações ocorridos ao longo dos tempos que ofuscaram a pureza original do edifício. Era necessário encontrar a beleza primitiva do monumento, o mesmo é dizer também, uma Igreja mais evangélica.
No livro A Catedral, Ribeiro apresenta algumas personagens resisten- tes, às obras de restauro. Estes membros do Cabido da Sé, estavam dema- siado comprometidos com os privilégios obtidos pelo clero no decurso da história, sendo-lhes difícil aceitar outro modelo de Igreja. A atitude dos clérigos é de apreensão, tendo em conta os antecedentes históricos de ata- que à Igreja por parte do Liberalismo e depois pela República. Eram homens que não aceitavam a perda do controle político e social, fechando o cerco, no sentido de se organizarem para reagir às forças opositoras e assim recuperar a antiga posição social.
Segundo Afonso Lopes Vieira, Manuel Ribeiro, é um «romancista espiritual, paladino da Igreja», era um homem profundamente informado sobre a história da liturgia e dos movimentos de apostolado litúrgico e retorno evangélico. Uma personagem de particular relevo nesta matéria, já enunciado na teorização da renovação artística religiosa, é o beneditino Monsenhor Pereira dos Reis, que Manuel Ribeiro conhecia e com quem partilhava o gosto pelas reformas liturgias dos frades brancos, conforme refere o Bispo de Portalegre, em convite feito ao escritor em 1926 para a sagração da catedral de Portalegre, lembrando que o mestre de cerimónias será um amigo comum: o Pe. Pereira dos Reis 12.
Podemos encontrar alguns paralelos estéticos e espirituais na trilogia social 13 de Manuel Ribeiro nos três romances de Huysmans 14, ambos com personagens em trânsito que se convertem ao catolicismo perante a arte das catedrais medievais e a beleza da liturgia. No entanto, julgamos que verdadeiramente estes escritores partilham uma apetência pela arte medie- val que os faz cristãos.
Quem primeiro terá se terá apercebido de certas semelhanças entre o misticismo espiritual de Manuel Ribeiro e Huysmans, com o apreço estético
que et modernité, Paris, CNRCS Editions, 2002. 11 Manuel RIBEIRO, A Catedral, Lisboa, Livraria Renascença, 1925, p. 296.
Seguimos a reedição de 1925 por ter ilustrações da Sé idealizada no romance. 12 BMBJS (Biblioteca Municipal de Beja José Saramago), Carta do Bispo de
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deste para com o escritor francês, com obras dedicadas à conversão ao catolicismo e gosto pela Idade Média, foi António Sardinha 15. Sardinha percebe a procura que o escritor português faz, no seu drama interior e conflitos ideológicos, por um caminho mais solitário e de pureza intelec- tual, que encontra num claustro. O integralista António Sardinha compara a figura de Durtal com a de Luciano e apreende as semelhanças entre ambos na procura da arte cristã como resposta aos seus problemas: um devota-se a Nossa Senhora de Chartres e outro a Santa Maria de Lisboa. Luciano continua o seu percurso pela Cartuxa de Miraflores, onde desco- bre a oração – tal como os monges que assim encontravam uma força inte- rior diferente –, e aquilo que Huysmans descobrira em A Rebours. O que os dois primeiros romances da trilogia social de Manuel Ribeiro represen- tam são aquilo a que o escritor gaulês chegou em En Route: a fé cristã. O mis- ticismo parece ter sido o porto seguro comum entre os dois autores. Manuel Ribeiro sonhando com um projecto mais vasto de renovação para a Humanidade e Huysmans, por sua vez, envolvendo as suas personagens num fim individual, físico, que os conduz à religião. É o caso da figura de Barbey d’Aurévilly, em A Rebours, que perante um dilema final de esco- lha entre o suicídio materializado por uma pistola e a salvação simbolizada pelo crucifixo que tem junto de si, opta pela conversão. O projecto de Ribeiro é mais universal e apologético, sonha com uma mobilização de todos, uma Revolução, após uma prévia redenção espiritual.
As «referências subtis» do ilustrado Sardinha levam a que o anarca Mário Domingues, num artigo de crítica literária 16, levante questões rela- cionadas com paralelos evidentes com a obra de Huysmans. Mas, acima de tudo, este comentador do jornal A Batalha não consegue compreender é o porquê de uma conversão à fé cristã, exortando mesmo Manuel Ribeiro para que esclareça junto dos leitores que o seu alto espírito era superior aos «manejos rasteiros cristãos» e chamando a atenção para os falsos elogios literários por parte dos reaccionários. O assunto da conversão do escritor de A Catedral já havia sido apontado, e este antigo companheiro de ideais de esquerda de Manuel Ribeiro não consegue esconder o pessimismo na defesa das ideias revolucionárias, que encontra em O Deserto, ao deparar
Portalegre, 14/02/1926. 13 A Catedral (1919), O Deserto (1922) e A Ressurreição (1923). 14 En Route (1895), La Cathédrale (1898), L’Oblat (1903). 15 Cf. António SARDINHA, “Misticismo e Revolução. A Volta do Espírito.
Manuel Ribeiro e Huysmans – O conflito de «O Deserto e o drama moral do «En Route»”, Diário de Lisboa, ano 2, n.º 425, 24/08/1922, p. 3.
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que Luciano, ao sair da Sé, em vez de se entregar a uma luta enérgica por uma sociedade nova se vai refugiar num convento. Para Mário Domin- gues, Ribeiro perdera ao aliara-se a uma filosofia dos «vencidos da vida», quando a ideologia que anteriormente partilhavam também pugnava por uma estética de «sentimentos sublimes de Solidariedade, de Bondade e de Beleza» 17.
No entanto, Manuel Ribeiro não escreve nenhum artigo face à sua pro- ximidade literária com Huysmans, certamente pela postura de intelectual discreto e asceta, que vivia isolado do mundo e que chama “cenóbio” ao seu próprio escritório, de decoração espartana. Apenas numa entrevista dada anos mais tarde, faz uma subtil referência às acusações que lhe haviam sido feitas, referindo-se à falta de «convivência entre os que se dedicam às letras...» 18.
Este escritor confina-se a um plano meramente intelectual e a sua obra, nomeadamente A Catedral, afirma-se como uma construção simbó- lica de beleza e misticismo passados à pedra, sendo, ao mesmo tempo, um livro de bolso sobre a arte gótica. Tal como Guido Battelli constata, um ano antes das referidas afirmações de Ribeiro, também este escritor ita- liano se revê numa partilhada admiração por Huysmans, essencialmente por ser: «un écrivain catholique» 19. Tal como o autor místico francês a que foi por vezes comparado, Manuel Ribeiro personifica a fórmula que constitui a maior semelhança entre ambos: o esteta fez o cristão.
A Catedral é a Sé de Lisboa, que aparece como um símbolo da Igreja e onde decorre todo o espaço do romance. A acção passa-se precisamente na sede do patriarcado, na sede da Igreja, é a Sedes, is latina. Luciano, per- sonagem principal, é o arquitecto a quem é confiado o restauro da Sé, pelo Patriarca de Lisboa. É nesta igreja que o jovem Luciano se vai cruzar com a Condessa de Monforte, com os cónegos, com os padres, com os operá- rios e o sindicalista, com a arte, com a política, com a religião, com os poderes oficiais e com os ocultos, com as diferentes crenças, valores e mentalidades. O mundo e todos os seus actores estão ou entram na Sé de Lisboa.
16 Cf. Mário DOMINGUES, “Uma Questão Literária. Ainda Manuel Ribeiro. Estranhesa natural – Um convite à valsa. . . – Avisos dum amigo que não quer ver perdida a reputação do seu amigo”, A Batalha, 22/08/1922, p. 1.
17 Mário DOMINGUES, “Uma Questão Literária. Manuel Ribeiro e a sua obra. Examina-se imparcialmente «O Deserto» e chega-se a conclusões pessimistas no que respeita à defesa das ideias revolucionárias”, A Batalha, 18/08/1922, p. 1.
18 “No «Cenobio de Papini»: Onde e como o Director da «Bandeira Vermelha»
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Na obra, as personagens simbolizam tópicos de uma problemática sobre a Igreja, quer no relacionamento interno dos clérigos, quer na rela- ção destes com figuras leigas não católicas. Os clérigos, residentes na Sé, incarnam diferentes sensibilidades teológicas, espirituais, e mesmo políti- cas, reveladoras da pluralidade existente no interior da hierarquia católica no início dos anos vinte. A jovem Condessa de Monforte, Maria Helena mais conhecida por Condessinha, simboliza a aristocracia que surge na obra de Manuel Ribeiro como mecenas, possibilitando os restauros ou os projectos inovadores. São os que possuem capelas ou propriedades e colo- cam os seus bens à disposição da Igreja, de modo à evangelização dos des- crentes. A antiga sociedade ainda aparece como referencial, estando ausentes as figuras do burguês e do político republicano.
A personagem fulcral de A Catedral é a de Luciano, figura em trânsito neste romance, vindo dos meios revolucionários, está num processo de descoberta da Igreja. Luciano é o arquitecto da remodelação da Sé e tem uma especial predilecção pela antiguidade medieval, em particular no que se refere à arte religiosa, apesar da ausência de piedade e da notória indi- ferença em matéria religiosa. O pensamento de Luciano subjacente ao res- tauro é o de encontrar as linhas originais, a pureza do edifício.
Através desta personagem, Manuel Ribeiro teve a percepção das dife- rentes atitudes internas no seio da Igreja e seu confronto. Notamos uma certa aproximação do real (social) que transparecia nas posições católicas. Os acontecimentos do principio do século, sobretudo a Lei da Separação (1911), originaram reacções diferentes no interior da Igreja. Este confronto atravessa todo o romance, simbolizado na controvérsia acerca do restauro da Sé: deve ou não restaurar-se a Sé (símbolo da Igreja)? Restaurar a Sé correspondia ao desejo de a libertar das sucessivas marcas da história que a afastavam das origens evangélicas, da verdade das origens: «é preciso despi-la da beleza falsa.» 20. «Antes as rugas veneráveis do que a maqui- lhagem de gesso.» 21. Não restaurar o edifício e mantê-lo era não querer questionar, era não se querer confrontrar com a verdade.
Para os eclesiásticos mais velhos, a presença dos operários era uma invasão, no sentido de tomarem uma opinião acerca da Igreja. Era uma Igreja instalada que sentia os outros diferentes como inimigos. Há aqui uma denúncia do processo de laicização: a Igreja ia perdendo protago- nismo social e sentia que os “homens modernos” e as suas ideias a punham
conheceu o «Homem do Saco». De como todo o Portugal o conhece. É um Santo, diz o autor do «Deserto»”, Diário de Notícias, ano 52, n.º 16255, 16/09/1928, p. 1.
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em causa. Permitir o restauro da Sé era permitir a entrada dos operários, para que eles, com o seu trabalho, lhe encontrassem as linhas originais. A ideia inerente apresentada por Manuel Ribeiro é a de que os “de fora” podem proporcionar aos “de dentro” o encontro com o Evangelho. Mas, para tal, é necessário que os “ímpios” tenham lugar no interior da Igreja.
Não é objecto de estudo deste trabalho a história do restauro da Sé de Lisboa 22. No entanto, pelo facto da obra A Catedral se centrar em torno dos restauros que o arquitecto Luciano faz na Sé, torna-se imprescindível perceber que obras decorriam na Catedral de Santa Maria em Lisboa no ano da primeira edição do livro (1919), quais os trabalhos que haviam sido realizados até aí e que obras de intervenção são idealizadas. De igual modo, não podemos deixar de comparar o restauro imaginado por Ribeiro, nos seus critérios estéticos, aos restauros efectivos operados pelo enge- nheiro Augusto Fuschini (entre 1902 e 1911) e pelo arquitecto Couto de Abreu (entre 1911 e 1942).
A Sé de Lisboa ao longo da sua antiguidade e culto permanente, foi sendo dotada no seu conjunto de diferentes estilos, sensibilidades estéticas e readaptações. Às mudanças de gosto acrescem as degradações naturais do tempo, tal como foi o terramoto de 1755, que provocou estragos sobre- tudo ao nível da torre sul da fachada, torre do cruzeiro e parte da capela- mor. Em finais do XIX a Sé apresenta uma planta reveladora de sucessivas épocas construtivas e com um espaço bastante fragmentado.
O século XIX, com uma sensibilidade romântica e historicista, trouxe as teorias de restauro puro, de modo a chegar-se à catedral ideal, com diversos intelectuais a dedicarem-se ao assunto. No que diz respeito à Sé de Lisboa, o nosso destaque vai para uma obra que julgamos ter tido espe- cial importância para Manuel Ribeiro relativamente à história da arte do monumento e aos seus restauros, assim como lança um desafio à denuncia de alguns destes últimos trabalhos de restauração. Trata-se da Lisboa Antiga, Bairros Orientais (1885, 1ª ed.), de Júlio de Castilho. Nesta obra, o 2º Visconde de Castilho insurge-se perante os restauros efectuados na Sé e aponta o exemplo dos trabalhos do restaurador Viollet-le-Duc na catedral de Paris, que por várias vezes cita. Anos mais tarde, o romancista e antigo jornalista Manuel Ribeiro escreve algo muito semelhante. Júlio de Cas- tilho, num capítulo da sua obra intitulado Brado em favor da restauração
19 BMBJS, Carta de Guido Battelli a Manuel Ribeiro, 23.08.1927. 20 Manuel RIBEIRO, Ibidem, 1925, p. 33. 21 IDEM, Ibidem, 1925, p. 17.
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da Sé de Lisboa, sugere uma metodologia apostada num restauro ideali- zado, sacrificando algumas épocas para uma situação de compromisso de valorização e analtecimento do período de D. Afonso IV 23.
É este o espírito de denúncia das alterações estilísticas e dos maus res- tauros realizados na Sé que Manuel Ribeiro irá seguir na A Catedral e que, anos antes, deixa expresso num mesmo tom num artigo de opinião de um jornal. Para o romancista, os restauros efectuadas por Fuschini não tiveram em conta o mestre medieval, por vezes demasiado imaginativo, e não tive- ram em conta sondagens mais conclusivas nos locais intervencionados para que se pudesse agir com maior segurança do restaurador. Apesar de reconhecer o trabalho do restaurador na procura de um estilo purista, afirma que este devia ter em conta aspectos da fisionomia primitiva da construção, não entrando em demasiados devaneios 24.
Quando em 1916, o escritor alude à ausência de grandes monumentos de arquitectura religiosa na capital – pois entende que essa monumentali- dade só é conseguida com uma catedral gótica –, encontramos já um esboço do seu futuro livro e ideia de catedral: «(...) uma dessas maravi- lhosas fábricas da Idade Média que é uma catedral gótica» 25. Apesar da inexistência de uma fábrica gótica em Lisboa, como noutros países euro- peus, havia na cidade um edifício comparável a outras grandes catedrais pela sua «alta tradição secular». Refere-se ainda que os restauros realiza- dos de uma forma metódica e criteriosa apenas começaram a ser efectua- dos pelo falecido engenheiro Fuschini. De capital importância para a percepção dos conhecimentos do escritor sobre a Sé é o facto deste referir que conhece nesse ano – estamos a três anos da publicação do primeiro livro da trilogia social –, o arquitecto Couto de Abreu, que lhe presta vários esclarecimentos sobre o decorrer dos trabalhos de restauro 26.
As ideias sobre o monumento artístico publicadas por Manuel Ribeiro neste ano de 1916 são, de uma forma sintética, aquilo que o livro expressou
22 Este assunto foi amplamente explanado por: Maria João Quintas Lopes Baptista NETO, “O Restauro da Catedral de Lisboa – Protótipo de uma Época”, op. cit. , 1996, pp. 505-573.
23 Cf. Júlio de CASTILHO, Lisboa Antiga. Bairros Orientais, 2ª ed. , vol. VI, Lisboa, S. Industriais da C.M.L., 1936, p. 225 e p. 228.
24 Manuel RIBEIRO, “ASé Patriarcal – A sua restauração, devida a Fuschini, tem sido apreciada com demasiado pessimismo”, A Capital, 21/01/1916.
25 Manuel RIBEIRO, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital, 27/01/1916, p. 1.
191A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
mais tarde nos projectos levados a cabo pela imaginária personagem de Luciano, assim como nas futuras realizações dos trabalhos de restauro de António Couto, diferente das impressões demasiado compósitas de Fus- chini acerca do antigo monumento. Pelo que, passamos a enumerar as principais linhas orientadoras da concepção ideal de restauro da Sé de Lisboa proposta por Manuel Ribeiro: valorização do românico ligado à fundação do edifício, nomeadamente na fachada e corpo da igreja, com a reconstrução de naves em abóbada de berço; reconstrução de uma capela- -mor gótica para valorização da charola do tempo de D. Afonso IV e que funcionasse como coroamento de toda a planta do templo. Anos mais tarde, em 1931, o escritor publica uma monografia sobre a história da arte da Sé de Lisboa, quando ainda não se tinham realizado grande parte dos restauros, como os que deram uma feição medieval às naves da catedral no decorrer da década de trinta. Neste livro encontramos o mesmo princípio de associar a fundação do monumento a D. Afonso Henriques, sendo por isso essencialmente românico, conferindo-lhe um principio unicamente cristão, ligado ao primeiro rei e isento de quaisquer parentescos árabes. De igual modo, a planta idealizada para o edifício é a de um corpo românico tonsurado por uma capela gótica.
Quando o primeiro romance da trilogia é publicado, já tinham surgido alguns planos de intervenção na Sé de Lisboa. Em 1902, começou um plano global de intervenção, antecedido por trabalhos essencialmente ligados a pequenas obras. De 1902 a 1911 temos à frente dos trabalhos o engenheiro Augusto Fuschini, então Presidente do Conselho Superior de Monumentos. Como já atrás foi referido, este técnico entende a sua actividade, enquanto interveniente, como algo meramente patriótico e reformula o edifício com um critério de mera idealização, mesmo com o prejuízo do novo desenho ser pouco fiel à verdade histórica do monumento. Nas soluções por este apontadas ligavam-se, de uma forma heterogénea, formulários estéticos bizantinos, românicos e góticos, com clara preferência por este último, con- forme testemunham alguns projectos para o exterior. Este apego ao gótico levam-no a coroar as torres da fachada com duas agulhas octogonais, numa tentativa de «goticisar» (ou afrancesar à Notre-Dame de Paris?) a Sé. O gótico deveria ser a linha orientadora de toda a sua intervenção 27.
A morte de Fuschini, em 1911, permitiu concluir apenas parte do pro- jecto na ala norte exterior do edifício. Sucede-lhe António do Couto Abreu,
26 Manuel RIBEIRO, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital,
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a partir de 1911, que começa de imediato a demolir algumas propostas do seu antecessor no cargo de restaurador da catedral, como foi o caso das fle- chas colocadas nas torres da fachada. Desta primeira intervenção ficaram alguns registos fotográficos e uma aguarela de Alberto Sousa, de 1917, pintura muito semelhante à que ilustrará uma das edições de A Catedral (1925). Esta edição apresenta a imagem de uma catedral então inexistente, a não ser na imagem que Manuel Ribeiro ergueu no papel e que, decerto, Couto Abreu não podia então apenas imaginar, dadas as dificuldades eco- nómicas da I República. Até 1926, a falta de verbas para as obras da Sé parecem ter sido uma constante, chegando mesmo a ser retirado material essencial ao normal prosseguimento das obras, como um referido guin- daste emprestado pelo Porto de Lisboa, dados os racionamentos que a I Grande Guerra provocava, ou a falta de pessoal operário para o normal prosseguimento dos trabalhos, em virtude das constantes guerras ocorridas durante este período, as quais Couto Abreu dava conhecimento aos seus superiores através de relatórios.
Couto de Abreu era um ardente defensor das intervenções de Viollet- -le-Duc, norteado pelo objectivo de repor o edifício na sua pureza româ- nica. No entanto, este arquitecto, tal como o arquitecto Luciano, prefere valorizar os antigos vestígios da ábside gótica, em maior predominância arqueológica, em detrimento das marcas da capela-mor românica primi- tiva. Contudo, a intervenção idealizada para o espaço da capela-mor nunca passou de um desenho que contemplava amplas janelas com arcos quebra- dos e vitrais e nove capelas ogivais na charola.
Só após a Revolução de Maio de 1926, que impôs a ditadura militar reaccionária, génese do Estado Novo, se abriu o caminho para que o Mi- nistério das Obras Públicas (M.O.P.) recebesse a chefia da supervisão dos monumentos, através da Administração-Geral. Em 1929, as obras nos monumentos são definitivamente centralizadas num organismo específico do M.O.P., a Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, cujo papel na área do restauro de património arquitectónico será fulcral como forma de legitimação histórica do novo regime, através dos grandes docu- mentos arqueológicos, que o recente poder se dizia herdeiro. É neste último cenário de exaltação histórica que se desenvolve grande parte da acção e ideias do arquitecto Couto Abreu na Sé, entre 1929 e 1942, supor- tado fortemente de um ponto de vista ideológico e económico por um Governo que também queria ter na catedral da capital um símbolo de robustez, tão sólido quanto a nova ordem e tão inabalável quanto a verdade histórica da formação da nacionalidade.
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A grande tarefa do arquitecto Luciano ao restaurar a Sé de Lisboa é a de descobrir as verdadeiras formas da catedral, apesar da falta de fontes históricas de que se queixa. As intervenções de restauro feitas até Luciano são enunciadas como simples reparações devido à falta de capacidade eco- nómica para tamanho projecto 28. Pelo que, o que este procura é «determi- nar a pureza» primitiva do edifício, escondida «sob o invólucro sacrílego de estuques e argamassas (...)» 29.
O relacionamento do arquitecto Luciano com a Sé é quase físico, sendo evidentes os paralelismos entre uma procura de pureza arquitectó- nica e a busca de pureza na alma humana. O projecto inicial de restauro do arquitecto Luciano parece todavia incerto. «Sei lá ainda!» 30 diz o mesmo relativamente à questão colocada: por onde iniciar os trabalhos? Para Luciano, certas eram as necessidades de se fazerem prospecções, como acontecerá relativamente às sondagens feitas na procura da cripta 31 e nas paredes da ábside 32, conforme se explicitará ao longo deste capítulo. Certo, na restauração, é a ideia de conferir um risco às ruínas da Sé semelhante ao que teriam feito outrora os mestres medievais.
Por diversas vezes são referidas, na óptica de Luciano (que é na ver- dade a opinião de Manuel Ribeiro), o desconhecimento histórico acerca do edifício e as devastações artísticas causadas à igreja pelas confrarias aí existentes e por uma má administração eclesiástica.
O restauro proposto é entendido como uma limpeza, uma acção de purificação dos excessos causados por trabalhos posteriores à concepção original 33.
Manuel Ribeiro estava, decerto, informado sobre os descontenta- mentos provocados que os incómodos das obras causaram junto dos reli- giosos. É exemplificativo desta ideia um documento lavrado em 1918, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, dirigido ao arquitecto Couto Abreu e onde são enumerados os referidos desconfortos causados pelas obras, num tom muito semelhante às queixas que o arquitecto Luciano encontra 34.
27/01/1916, p. 1. 27 Augusto FUSCHINI, A Architectura Religiosa na Edade-Média, Lisboa, 1904,
Imprensa Nacional, p. 164. 28 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 18. 29 IDEM, Ibidem, 1925, p. 15. 30 IDEM, Ibidem, 1925, p. 23. 31 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 149. 32 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 66.
194 JOSÉ ALBERTO RIBEIRO
No entanto, nem todos estavam contra o trabalho de Luciano. Quer Maria Helena Monforte, quer o Padre Anselmo haviam percebido a pro- cura da pureza original do edifício que Luciano, aos poucos, ia desco- brindo.
Para Luciano a «restauração era uma ressurreição» 35, cabia-lhe a ele a obrigação e o dever de resgatar o velho edifício, purificá-lo, numa ope- ração que é acima de tudo percebida como limpeza dos séculos posterio- res à Idade Média, retirando-lhe todos os outros formulários estéticos que o tempo acrescentara. Restaurar, redescobrir, ressuscitar, renascer, são as palavras propostas como símbolo da intervenção.
Das intervenções enumeradas no livro, recebem maior destaque as executadas no claustro, na ábside e deambulatório, e na procura da cripta da catedral, a última sondagem e que está na origem da construção de uma capela nova, como à frente se referirá. Luciano enumera como grandes descobertas das suas escavações arqueológicas: a identificação de um fecho de uma abóbada de uma capela da charola; os vestígios da abside românica do tempo de D. Afonso Henriques, junto à capela de S. Vicente; o desem- paredamento do trifório do século XII, obstruído por uma arcaria clássica do tempo de D. Pedro II 36; e descoberta dos fragmentos de uma grande rosácea do século XII existente na fachada 37.
O claustro é referido como sendo grave e austero, de uma auste- ridade de cariz cisterciense, anterior à ábside gótica do tempo de D. Afonso IV, facto que implica a sua mutilação para a construção da nova capela gótica: «Era inevitável o sacrifício. Não havia que hesitar.» 38. Pelo que o claustro seria de raíz românica uma vez que, segundo as pes- quisas do arquitecto Luciano, teria as abóbadas em muros trabalhados anteriormente, assim como as nervuras de secção poligonal seriam de uma feição mais primitiva, ao passo que as nervuras da charola da capela-mor já respiravam a «elegância da factura ogival» 39. A passagem do claustro para o deambulatório, pela Porta escura, representa a prefe- rência do autor pela arte gótica, carregada por uma reverência espiritual para com este estilo 40.
33 IDEM, Ibidem, 1925, p. 33. 34 Arquivo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Sé de
Lisboa. Carta da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé Patriarcal. 06.05.1918. 35 IDEM, Ibidem, 1925, p. 107. 36 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 223. 37 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 52.
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Luciano reconhece que o deambulatório era essencialmente gótico, pela sua forma poligonal, mostrando ao Padre Anselmo uma planta por si realizada com as nove capelas góticas do século XIV, então escondidas na amálgama dos adulterações existentes 41. De modo a comprovar esta teo- ria, o arquitecto manda os operários escavar nas traseiras da ábside e a prospecção vem confirmar a existência de uma cabeceira gótica 42.
As ideias do arquitecto acabam por ser confirmadas e isso justifica a planta por ele traçada, que apresenta à condessinha e ao presbíero seus amigos, muito semelhante na descrição à que Manuel Ribeiro refere numa monografia sobre a Sé, em 1931 43. Para Luciano, a cabeceira teria uma dis- tribuição de pedraria em fiadas concêntricas, com um alinhamento simé- trico de arestas em toda a radiação do desenho.
Quanto à nave da catedral, então com a aparência de «um hierático manequim grotescamente travestido» 44, apresentava um aspecto pouco condigno para uma nave românica original do tempo de D. Afonso Hen- riques. Segundo o arquitecto encarregado dos restauros, a nave central do século XII podia ser comparada a uma alameda de árvores, mostrando assim o autor uma visão orgânica e estrutural do gótico.
Mas, o apreço do arquitecto restaurador não se fez sentir só pelo gótico da ábside ou pela nova capela do eixo da mesma que decide recriar. O românico, arte predominante na Sé, é valorizado não só enquanto único estilo desta corrente estilística existente em Lisboa, mas também como sinónimo de uma arte que remontava ao início da nacionalidade portu- guesa, e por isso lido como algo de robusto, o primeiro sólido alicerce nacional, que impunha confiança pelo sua «severidade austera», e que «(...) por ser irmão gémeo da liturgia e do cantochão, é a arquitectura que mais convém à Igreja.» 45, nas palavras de Pe. Anselmo. O exemplo estru- tural que é apresentado desse edifício sólido são as suas abóbadas de berço, que exigiam maciços sólidos para suporte do peso 46.
O período após D. João I é tido como o início de decadência artística da Catedral, coincidindo com o abandono das artes com a gesta dos Des- cobrimentos. Luciano acusa D. Manuel, responsável por um estilo próprio
38 IDEM, Ibidem, 1925, p. 25. 39 IDEM, Ibidem, 1925, p. 26. 40 IDEM, Ibidem, 1925, p. 27. 41 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 28. 42 IDEM, Ibidem, 1925, p. 66. 43 IDEM, A Sé de Lisboa – A Arte em Portugal, Porto, Marques Abreu, 1931.
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e por tantas obras feitas na capital, de não ter dado uma única pedra à Sé de Lisboa, assim como os seus descendentes.
Para o arquitecto, todos os templos da capital eram demasiado «moder- nos e ateatrados», à excepção do Jerónimos, mas cujo gosto lhe parecia demasiado estranho, demasiadamente decorativo, para a sua visão da sen- sibilidade dos artistas medievais 47.
A falta de sensibilidade de Manuel Ribeiro para o gótico-manuelino parece ter, de facto, marcado uma constante no seu pensamento para com esta expressão artística, onde não encontra a espiritualidade da antecedente arte medieval. Ainda antes do livro A Catedral, em 1916, encontra nos Jerónimos um espaço grandioso ligado à descoberta do caminho marítimo para a Índia, mas «sem mistério nem religiosidade» 48, ainda para mais conspurcado com uma capela-mor clássica.
Em 1929, referia-se à Sé de Évora como a maior «manifestação gran- diosa do ciclo cristão», que não se repetiu. Refere-se ao naturalismo ma- nuelino como algo essencialmente decorativo, espalhado pela província alentejana com um «hibridismo manuelino-mourisco», que conferia uma feição algo interessante às construções no Alentejo 49.
Comparável à decadência do período das descobertas só os restaura- dores do século XVIII, cujo único trabalho fora o de forrar o edifício da Sé de Lisboa com estuques e cores garridas, sem respeito pela verdadeira arquitectura do monumento:
«(...) betumaram-lhe as fracturas, vestiram-na de trajes garridos, bar- raram-lhe as rugas de cremes (...).» 50.
O livro abre ainda campo para o espírito da recriação, tão ao gosto do arquitecto francês Viollet-le-Duc. A ideia surge inicialmente em virtude de Luciano procurar encontrar na catedral de Lisboa uma cripta, à seme- lhança do que acontecia noutras catedrais, tal como em Mans. Assim, são feitas pesquisas nesse sentido, em «sondagens na colateral norte junto à porta travessa», mas o que este encontra é uma longa galeria abobadada na direcção norte-sul, interceptada pelo jazigo de D. Rodrigo da Cunha.
44 IDEM, Ibidem, 1925, p. 31. 45 IDEM, Ibidem, 1925, p. 224. 46 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 228. 47 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 233. 48 RIBEIRO, Manuel, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse
venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital, 27/01/1916, p. 1.
197A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
Perante o paralelo sistemático feito por Luciano com as catedrais france- sas, a partir do século XII, este não esconde a desilusão de não encontrar uma cripta e no eixo da capela-mor uma capela dedicada à Virgem que, de uma forma simbólica, velava à cabeceira do Filho morto. É então que a condessinha de Borba, Maria Helena, tem a seguinte ideia:
«E se nós erguêssemos no deambulatório da Sé uma capela da Virgem, como a da catedral francesa?» 51.
Manuel Ribeiro aflora a questão da recriação de um novo edifício sacrificando todas as outras manifestações artísticas de séculos posterio- res, colocando assim em debate a discussão em torno dos restauros pu- ristas. Na figura do Cónego Fulgêncio, surge um ataque à actividade restauracionista:
«E crês tu que atacando com a tua cirurgia a cirrose destes muros lhes dás a vida que eles tiveram?» 52
De igual modo, o velho Cónego Fulgêncio critica outro ponto caro aos restauradores puristas: as destruições causadas pelas obras. A título da pro- curada origem do monumento iam sendo sacrificadas todas as épocas pos- teriores ao período medieval, o que correspondia a um desrespeito pela história de toda a arquitectura cristã 53.
No entanto, nas palavras de Luciano é evidente o seu desejo de um restauro maior, para além da reposição pedra por pedra, do portal à ábside. O sonho de Luciano traduz-se, de facto, por uma nova Igreja mais de acordo com os princípios da primitiva, que é o projecto do ideólogo Manuel Ribeiro:
«Não será a arte uma nova religião capaz de restituir a vida à velha Sé?» 54
O escritor liga a ideia de um requerido primitivismo arquitectónico a uma pureza da arte e dos católicos dos primeiros séculos da Igreja. Deste modo, quando Luciano, no último livro da série social, A Ressur- reição, chega a Roma, fica impressionado com a monumentalidade da cidade barroca da Contra-Reforma, mas não lhe encontra a espirituali- dade desejada que vê nas igrejas góticas carregadas de teologia e senti- mento evangélico.
49 Cf. Manuel RIBEIRO, O Alentejo. Exposição Portuguesa de Sev ilha, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1929, pp. 24-25.
50 IDEM, A Catedral, 1925, p. 32. 51 IDEM, Ibidem, 1925, p. 149.
198 JOSÉ ALBERTO RIBEIRO
Ainda assim, Luciano acredita que o seu trabalho não é o de uma «simples reparação» 55, nem que a sua acção seja capaz de alcançar uma espiritualidade dos antigos, embora a função do artista fosse de igual modo espiritual.
Considerações finais
Manuel Ribeiro teve como modelos literários das «Catedrais de Papel» em parte graças ao esforço e talento de escritores como Vítor Hugo. Este autor é o grande líder dos «construtores» literários de catedrais e dos divulgadores da arte gótica, ou medieval, em versões de pequenos livros de bolso acessíveis a qualquer leitor, que se assumem como uma metáfora de um museu de imagens medievais. Outro autor analisado, Huysmans, considera, ao contrário da crítica feita à Igreja de Hugo, a arte religiosa produzida nas catedrais como um sinónimo de uma linguagem franca e de um clero sincero e virtuoso para com os cristãos. Encontra na Idade Média o ponto alto da civilização, por se tratar de um longo período onde impe- rou o principio cristão. É nesta última linha de pensamento que melhor se reproduzem os conceitos estéticos de Manuel Ribeiro.
Manuel Ribeiro é um esteta sensível à arte cristã medieval: à arqui- tectura e à liturgia monástica. Durante a guerra, sem poder desenvolver a sua actividade sindicalista, levava os operários a visitar igrejas. O próprio escritor começou a frequentar a Sé de Lisboa e a assistir aos ofícios litúr- gicos. Pelo que, em primeiro lugar, A Catedral é uma descrição de emo- ções estéticas. Para além de que o entusiasmo ao longo de todo o livro em torno do restauro da Sé é, também, o entusiasmo em encontrar as suas ori- gens mais remotas. Restaurar, significa não só libertar a Igreja de todos os acrescentos e adulterações ocorridos ao longo dos tempos que escondiam a pureza original do edifício, significa também a necessidade de encontrar a beleza primitiva do monumento, o mesmo é dizer também, e de “restau- rar” uma Igreja mais evangélica. Não restaurar o edifício, mantendo as alterações que sofrera o longo do tempo, significa não querer questionar, não se querer confrontrar com a verdade histórica presente. A ideia sempre subjacente é a de um restauro Maior.
Manuel Ribeiro confina-se a um plano meramente intelectual e A Cate- dral, afirma-se como uma construção simbólica de beleza e misticismo passa- dos à pedra, sendo, ao mesmo tempo, um livro de bolso sobre a arte gótica.
52 IDEM, Ibidem, 1925, p. 284. 53 IDEM, Ibidem, 1925, p. 288. 54 IDEM, Ibidem, 1925, p. 284. 55 IDEM, A Catedral, 1925, p. 286.
199A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
Fi g . 1 - Fachada principal da Sé de Lisboa segundo o restauro ideali- zado de A Catedral. Desenho de Alfredo Cândido. Edição 1925.
Fi g . 2 - Fachada principal. Década de 1940. AFCML –
200 JOSÉ ALBERTO RIBEIRO
Podemos constatar que Manuel Ribeiro conhecia bem o edifício da Sé de Lisboa, as alterações provocadas pelos restauros operados pelo enge- nheiro Augusto Fuschini (entre 1902 e 1911), assim como as intenções idealizadas pelo arquitecto Couto de Abreu, que conduz os trabalhos de restauro após 1911. A acção do livro decorre em 1919 e, quer os restauros idealizados no livro quer a ideia concebida em restituir o monumento segundo o estilo primitivo mais de acordo com a sua história gloriosa medieval, se confundem com o que foi realizado anos mais tarde pelo arquitecto Couto de Abreu (Fig. 1 e 2). Podemos afirmar, sem grandes receios, que a personagem do Arquitecto Luciano partilha no romance os conceitos de intervenção no monumento com Couto Abreu e a espirituali- dade e gostos estéticos com o «arquitecto» Manuel Ribeiro.
Manuel Ribeiro não encontra na Sé de Lisboa a monumentalidade das grandes catedrais góticas, mas entende a catedral da capital como um edi- fício comparável à suas congéneres europeias pela sua «alta tradição secu- lar». Assim, critica Fuschini na sua tentativa de «goticizar» o corpo românico da Sé, já que a sua visão está mais de acordo com um conceito artístico ligado ao principio da nacionalidade. A Sé é associada a D. Afonso Henriques, sendo por isso essencialmente românica, e é isso que lhe con- fere um principio unicamente cristão.
Manuel Ribeiro conhece Couto Abreu em 1916, que foi certamente uma influência determinante para as principais linhas orientadoras da sua concepção de restauro ideal da Sé de Lisboa. Este “restauro ideal” pro- posto por Manuel Ribeiro em A Catedral será efectivo anos mais tarde exactamente pela mão de Couto de Abreu. Trata-se de uma imagem que Manuel Ribeiro ergueu no papel e que, em 1919, Couto Abreu não podia então apenas idealizar: a valorização do românico ligado à fundação do edifício, nomeadamente na fachada e corpo da igreja, a reconstrução de naves em abóbada de berço; a reconstrução de uma capela-mor gótica para valorização da charola do tempo de D. Afonso IV que funcionasse como coroamento de toda a planta do templo (Fig. 3 e 4).
Tal como Viollet-le-Duc, Manuel Ribeiro, que fala pela boca da sua personagem arquitecto Luciano, é norteado pelo objectivo de repor o edi- fício na sua pureza primitiva, a românica. Anos mais tarde, é num cenário de exaltação histórica, entre 1929 e 1942, que se desenvolve grande parte da acção e das ideias do arquitecto Couto Abreu na Sé.
Para Luciano a «restauração era uma ressurreição». “Restaurar”, “redes- cobrir”, “ressuscitar”, “renascer”, são as palavras propostas como símbolo da intervenção. É Viollet-le-Duc que vai ajudar este autor de um monumento erguido sobre caracteres na escolha efectiva e mais exclusiva do sistema
201A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
Fi g . 3 - Pormenor da Charola segundo o restauro idealizado. Desenho de Alfredo Cândido em A Catedral. Edição 1925.
Fi g . 4 - Aspecto geral da Charola (Sul) após os res- tauros. AFCML
202 JOSÉ ALBERTO RIBEIRO
gótico, que justificava as recriações mais imaginativas do arquitecto pela arte medieval consentânea do monumento de Lisboa. Luciano, tal como o mestre francês de que é herdeiro, vê o gótico como um sistema estrutural, um jogo de peças único, onde o arquitecto é principalmente construtor e onde a arte medieval se afirma como a melhor forma de conservação de um edifício, por lhe devolver uma função, um destino, que legitimava as alterações ou modificações propostas por quem dirigia os trabalhos.
Manuel Ribeiro é uma figura da intelectualidade portuguesa impres- cindível para a compreensão da segunda década do novo século XX e um exemplo de outros intelectuais que procuravam uma pureza original da sociedade num sentido mais lato, onde a Igreja assumiu um lugar fulcral pelo seu papel na sociedade. Manuel Ribeiro alimentava a ideia de um mundo diferente após uma revolução ainda por fazer, o fulcro da sua preo- cupação é o da justiça social como denominador comum de uma socie- dade futura. A Igreja, enquanto instituição secular, é onde Manuel Ribeiro vai procurar uma solução para o mundo e acaba por encontrar o sentido e harmonia social na beleza religiosa e na beleza da liturgia católica.
Mas, é uma nova Igreja que este teórico procura, não a instituição cumulada de privilégios e que reconhece as desigualdades sociais que a modernidade não conseguiu resolver. Daí, a procura de uma Igreja mais evangélica, também em busca de um restauro, por um restauro maior, em suma, de um renascimento, um «mundo novo» que precisava de homens imaculados como São Francisco de Assis ou o Padre Cruz.
Vamos encontrar nas obras estudadas o espírito de um revolucionário que precisa de crescer interiormente, a ideia de uma revolução interior para atingir uma militância com valores morais mais altos: a religião. Propõe um homem novo, mais espiritual e à semelhança dos monges da Cartuxa de Miraflores, tal como os descreve em O Deserto. Trata-se da busca de homens que, à imagem do primeiro apostolado, ajudem a cons- truir uma nova sociedade, tal como São Pedro ou São Paulo o fizeram. Uma das razões das inúmeras referências aos primeiros mártires cristãos é precisamente a sua fé, autêntico acto de missão maior, que vai ao ponto do sacrifício da própria vida. A ideia subjacente é a de uma militância que só o cristianismo conseguia imprimir. Se foi sobre as catacumbas dos primei- ros cristãos que surgiu o novo mundo desprendido de bens materiais o regresso aos valores primitivos da pureza evangélica – e concretamente à ideia de gótico – garantirá, para Manuel Ribeiro, a construção de uma nova sociedade ideal no conturbado início do século XX português.
A obra de Manuel Ribeiro é o testemunho literário de um percurso pessoal que parte de uma posição anarco-sindicalista até chegar ao cristia- nismo. O autor revela um conhecimento profundo sobre conceitos estéticos muito «fin de siécle» e um gosto evidente pela arte medieval, sobretudo o Gótico. Pelo que, este autor defende uma estética da medievalidade e o seu valor simbólico, inserido no contexto de uma herança cultural da época contemporânea, ligada ao resgate de um gosto e de um modelo civiliza- cional inspirado numa Idade Média cristã, tendo como objectivo uma res- tauração católica.
* Mestre em Arte, Património e Restauro pela Faculdade de Letras de Lisboa. Docente no Departamento de Estudos Europeus na mesma Faculdade. Técnico do IPPAR.
1 JoséAlberto RIBEIRO, A Catedral de Papel – O escritor Manuel Ribeiro (1878- -1941): Um Esteta da Medievalidade e da Espiritualidade Cristã, Dissertação de Mestrado em Arte, Património e Restauro apresentado à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2002.
A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941) E A RECUPERAÇÃO
DO GÓTICO NA I REPÚBLICA PORTUGUESA
JOSÉ ALBERTO RIBEIRO *
LUSITANIA SACRA, 2ª série, 16 (2004) 179-202
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Para a compreensão do esteta torna-se necessário analisar outros aspec- tos relacionados com o seu pensamento político e conceitos artísticos, para os quais preconiza uma renovação. O livro utilizado, A Catedral, é uma fonte de especial interesse para uma análise política e religiosa dos inícios do século XX, com informações férteis por parte do autor neste sentido.
Através do pensamento dos teóricos nacionais, ao longo do século XIX, podemos entender melhor como é que se implementou um “novo” gosto e um “novo” olhar para a Idade Média 2. Do académico Cyrillo Volkmar Machado, a quem a arte gótica provocava horror, a um jovem Almeida Garrett que reconhecia propriedades únicas à arquitectura gótica nas funções de templo cristão, a Alexandre Herculano, primeiro grande defensor dos monumentos góticos e da catedral enquanto monumento da nação, a Ramalho Ortigão, legítimo herdeiro deste último na teorização sobre património artístico e monumentos medievais portugueses, defi- nindo o gótico como a arte da proporção, encontramos todo um edifício teórico sobre o qual se constrói esse novo olhar do mundo medieval. Em Portugal, ao longo do século XIX a teorização do gótico é sobretudo apro- priada pelo universo dos autores do liberalismo e entendida como forma de justificação da especificidade da identidade portuguesa. Antes de mais, a ideia do gótico encerra duas questões essenciais ao período que então se vivia: por um lado, uma apropriação ideológica deste estilo enquanto refe- rente do período de consolidação do espaço territorial português, com uma utilização historiográfica de valorização dos mitos, heróis e edifícios de valor simbólico nacional 3; por outro lado, a necessidade da reutilização
2 No âmbito dos estudos dedicados à historiografia sobre o património histórico português destacamos: Maria João NETO, A Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1929-1960, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 3 vol., Lisboa, 1996.; IDEM, Memória, Propaganda e Poder. O Restauro dos Monumentos Nacionais (1929-1960), Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2001; Nuno ROSMANINHO, A Historiografia Artística Portuguesa de Raczynsk i ao Dealbar do Estado Novo (1846-1935), Dissertação de Mestrado em História Contemporânea de Portugal, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1993; Lúcia ROSAS, A Arquitectura Religiosa Medieval. Património e Restauro (1835-1928), Dissertação de Doutoramento em História da Arte, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995; Paulo RODRIGUES, Património, Identidade e História. O Valor e o Significado dos Monumentos Nacionais no Portugal de Oitocentos, Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea, Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa, 1998.
3 Ver Ernesto Castro LEAL, Nação e Nacionalismos, Lisboa, Edições Cosmos, 1999, relativamente à questão da criação de heróis nacionais no período contemporâ-
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dos edifícios religiosos, sobretudo de origem medieval, abandonados e expropriados, para os quais importava definir uma utilização futura e, sobretudo, conservar.
É neste contexto que podemos compreender melhor a herança intelec- tual de que Manuel Ribeiro é legatário, afirmando-se enquanto autor de um cenário medieval carregado de simbologia cristã e nacionalista.
Manuel Ribeiro – uma conversão mística pela estética
A obra de Manuel Ribeiro demonstra de uma forma peculiar o cami- nho percorrido por um anarco-sindicalista, ateu que se converte ao cristia- nismo, que Igreja o cativou e o que é que na religião o converteu. Este autor surge como uma resposta militante do catolicismo às questões que o mundo moderno e industrializado colocava, com destaque para o pensa- mento do Papa Leão XIII sobre a questão social e da encíclica Rerum Novarum (1891) 4. Foi a sociedade fracturada com inúmeras desigualdades que primeiro criou o revolucionário, depois o revolucionário descreditado e por fim o eterno militante que, pela palavra, procura ajudar numa nova revolução, uma revolução cristã. Manuel Ribeiro é um escritor convertido que, de trabalhador dos Caminhos de Ferro Portugueses e membro funda- dor do Partido Comunista Português, chega à comunidade católica Era Nova e, por fim, a conservador da Torre do Tombo.
As questões que os teóricos portugueses debatem neste período pas- saram também pelo clero nacional, que responde à situação de decadência do património artístico com a ideia conjunta da necessidade de uma mili- tância, tendo em vista uma restauração católica. A Igreja mobiliza-se e aparecerem as primeiras opiniões “concertadas” acerca da situação artís- tica nacional. Acresce ainda o facto de que, em finais do século XIX, com a encíclica Rerum Novarum – que constitui um momento importante no relacionamento da Igreja Católica com as sociedades modernas em torno da esfera social e em resposta às alterações sociais – é reforçada a ideia subjacente de uma restauração religiosa da sociedade. É neste contexto que muitos teóricos da Igreja portuguesa, verdadeiros herdeiros de
neo e a sua ligação simbólica com determinados monumentos. 4 Cf. António Matos FERREIRA, “Questions autour de la répercussion au
Portugal (1891-1911) de l’encyclique Rerum Novarum”, Rerum Novarum. Ecriture, con- tenu et réception d’une encyclique, Actes du colloque international organisé para l’Ecole française de Rome et le Greco n.º 2 du CNRS (Rome, 18-20 avril 1991),
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Chateaubriand, vão defender uma recuperação do cristianismo e das quali- dades estéticas de uma arte verdadeiramente pura e cristã, tal como fora o gótico. Um restauro medieval simbolizava um restauro católico e a res- tauração de um tempo em que o cristianismo era o único referencial civili- zacional.
É neste quadro social, político e religioso que surge Manuel Ribeiro, num percurso algo insólito que o leva de uma posição anarco-sindicalista à conversão ao catolicismo pela estética. Nesta perspectiva, poderemos dizer que é A Catedral que o faz cristão.
A figura de Manuel Ribeiro é um testemunho literário de um activista e intelectual que faz um percurso ideológico que o leva de uma posição anarco-sindicalista até o mundo do catolicismo. A historiografia tem-se dedicado a este escritor sobretudo do ponto vista da crítica literária 5 ou, mais raramente, no âmbito ideológico 6, esquecendo uma das suas facetas mais interessantes: a de esteta 7.
Desde cedo, Manuel Ribeiro mostrou-se defensor das classes operá- rias e começou a ser notado pelos seus escritos reivindicativos publicados em jornais dos quais era colaborador: O Sindicalista, A Batalha, ou A Bandeira Vermelha, jornal de inspiração bolchevista onde foi director durante algum tempo.
Em 1920, o facto de ter colaborado numa greve feita pelos ferroviários leva-o a conhecer a prisão do Limoeiro durante um mês e ao consequente
Collection de l’Ecole Française de Rome n.º 232, Palais Farnèse, 1997. 5 Vejam-se como obras de referência: Óscar LOPES, e António José SARAIVA,
História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1982, p. 1068; SARAIVA, António José, História da Literatura Portuguesa – Século XIX- XX, Braga, Editora Pax, 1985, p. 417 e LANÇA-COELHO, “«ABatalha nas Sombras». Um caso de Nomadismo e uma digressão por Beja do fim do século XIX”, Rodapé – Rev ista da Biblioteca Municipal de Beja, n. º 5, Beja, Verão- 2001, pp. 64-67.
6 Neste domínio ressaltamos o trabalho com um maior levantamento de todas as obras escritas e traduzidas de Manuel Ribeiro, feito numa perspectiva essencialmente de âmbito teológico, veja-se: Carlos ANTUNES, Manuel Ribeiro , Trabalho de Licenciatura, Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 1998.
7 Os únicos estudos, do nosso conhecimento, dedicados às sensibilidades estéti- cas de Manuel Ribeiro, nomeadamente ao restauro arquitectónico, são os de: Maria João NETO, op. cit. , 1996, pp. 527-529; Maria João NETO, “Os Restauros da Catedral de Lisboa à luz da Mentalidade do Tempo”, Carlos Alberto Ferreira de Almeida. In Memoriam, vol. II, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1999, pp. 131-141; e Patrícia MONTEIRO, “«ACatedral» de Manuel Ribeiro – Uma obra reflexo das teorias de restauro dos tempos da Primeira República”, 8º Relatório de Progresso sobre o
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despedimento. Todavia, este período marca também o início do sucesso da carreira de Manuel Ribeiro enquanto escritor, após a edição do romance A Catedral, considerado um êxito na época que contou com inúmeras reedi- ções. Este livro será o primeiro de uma trilogia, que incluirá ainda O Deserto e A Ressurreição. A actividade literária intensificou-se a partir de então, tor- nando-se mesmo a principal fonte de rendimentos de Manuel Ribeiro.
Após 1932 trabalhou na Biblioteca Nacional e como conservador na Torre do Tombo. Faleceu com 67 anos, em Lisboa, a 27 de Novembro de 1941.
Os «Construtores» de «Catedrais de Papel» e de uma cultura estética da medievalidade
Os literatos que se dedicaram à utilização de monumentos medievais para ilustração e enredo das suas obras, sobretudo a partir do romantismo, ajudaram a criar um sentimento de afectividade para com este património. Através da descrição de um grande de número de obras esquecidas, em grande parte porque filtradas por um gosto de raiz clássico até então insti- tuído, estes monumentos tornam-se partilhados colectivamente. Passam a ser tidos como uma riqueza comum a qualquer povo que reclame para sua herança uma aventura colectiva na constituição da nação, tal como uma árvore genealógica heróica, à imagem da constituição dos antigos reinos medievais europeus. Neste sentido, Marc Fumaroli 8 refere-se quer a Chateaubriand quer a Baudelaire, autores dos termos «homem moderno» e «homem novo», como homens atormentados na procura da sua própria história, turbulenta e perdida, em cujo pensamento surge a ideia de patri- mónio como um elemento reparador de identidade.
O interesse pela Idade Média, desprezada pelos racionalistas do século XVIII 9, é desenvolvido pelos criadores românticos que a tornam numa das suas principais atracções. O gosto que os românticos encontram pelo irracional, pelas forças obscuras, pelo sonho, o sobrenatural, e as cores vivas do imaginário, determina assim que a Idade Média se trans- forme numa fonte quase inesgotável de modelos para inspiração artística.
Programa de Estudos Integrados do Edifício da Sé de Lisboa, Protocolo IPPAR-FLL-IST, Lisboa, Outubro de 1999, pp. 65-77.
8 Para uma síntese sobre a história literária do património em França, dos sécu- los XVIII e XIX, veja-se: Marc FUMAROLI, “Jalons pour une histoire littéraire du patri- moine”, Actes des Entretiens du Patrimoine, dir. Pierre Nora, Paris, Fayard, 1997, p. 113.
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Surge então a ideia de uma Idade Média tenebrosa, modelo que triunfa por volta de 1830 em parte graças ao esforço e talento de escritores como Vítor Hugo.
Podemos questionar porque é que o romantismo ressuscitou desta maneira contraditória e complexa a Idade Média. Que figuras mitológicas é que foram valorizadas e quais foram os «lieux de mémoire» deliberada- mente escolhidos? Em que sentido a historiografia utiliza esta Idade Média em termos culturais, políticos, religiosos e sociais? Parte destas respostas podemos encontrá-las na pitoresca produção historiográfica de Michelet ou nas obras literárias de Vítor Hugo ou de Joris-Karl Huysmans.
Mais do que uma obra arquitectónica, a catedral é um manifesto impresso, um pensamento escrito em pedra que Hugo transforma no registo principal da humanidade. A ideia subjacente é a de ser possível erguer um edifício sólido baseado nas ideias deste «Hugoth», o «livro gra- nítico» dos registos humanos, como que se de uma metáfora de um museu de imagens se tratasse. O conceito venceu e estava definitivamente lan- çado o conceito romântico das «cathédrales de poches» 10.
A Catedral de Manuel Ribeiro – um restauro idealizado para a Sé de Lisboa
O escritor Manuel Ribeiro revela n’A Catedral um gosto pela arte medieval indiscutível, que o nos permite perceber algumas das suas fontes de inspiração e influências, com destaque para dois autores: Hugo e Huysmans. O livro sobre a catedral, podemos dizê-lo, trata-se de uma obra de cariz romântico na senda da «hugolatria» provocada por Notre-Dame de Paris. Em relação a este último, são claros os paralelos entre dois amores impossíveis e a valorização de um edifício medieval com vida própria, embora com fins ideológicos diferentes. O Luciano de Manuel Ribeiro, a determinada passagem do romance, é mesmo comparado ao Frolo da cate- dral parisiense, quando os padres da Sé se viram contra o arquitecto 11.
Manuel Ribeiro é um esteta sensível à arte cristã medieval: à arquitec- tura e à liturgia monástica. Durante a guerra, sem actividade sindicalista,
9 Sobre o gosto pelo gótico e o retorno à natureza ao longo do século XVIII veja--se: A. O. LOVEJOY, e Michel BARIDON, Le Gothique des Lumières, Brionne, Gérard Monfort Éditeur, 1991.
10 Ségolène LE MEN, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet. Regard romanti-
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levava os operários a visitar igrejas. O próprio Ribeiro começou a fre- quentar a Sé de Lisboa e a assistir aos ofícios litúrgicos. Era o apelo do belo. A Catedral é uma descrição de emoções estéticas. O entusiasmo pela possibilidade de restaurar a Sé é, também, o de encontrar as suas origens mais remotas. Restaurar é libertar a Igreja de todos os acrescentos e adul- terações ocorridos ao longo dos tempos que ofuscaram a pureza original do edifício. Era necessário encontrar a beleza primitiva do monumento, o mesmo é dizer também, uma Igreja mais evangélica.
No livro A Catedral, Ribeiro apresenta algumas personagens resisten- tes, às obras de restauro. Estes membros do Cabido da Sé, estavam dema- siado comprometidos com os privilégios obtidos pelo clero no decurso da história, sendo-lhes difícil aceitar outro modelo de Igreja. A atitude dos clérigos é de apreensão, tendo em conta os antecedentes históricos de ata- que à Igreja por parte do Liberalismo e depois pela República. Eram homens que não aceitavam a perda do controle político e social, fechando o cerco, no sentido de se organizarem para reagir às forças opositoras e assim recuperar a antiga posição social.
Segundo Afonso Lopes Vieira, Manuel Ribeiro, é um «romancista espiritual, paladino da Igreja», era um homem profundamente informado sobre a história da liturgia e dos movimentos de apostolado litúrgico e retorno evangélico. Uma personagem de particular relevo nesta matéria, já enunciado na teorização da renovação artística religiosa, é o beneditino Monsenhor Pereira dos Reis, que Manuel Ribeiro conhecia e com quem partilhava o gosto pelas reformas liturgias dos frades brancos, conforme refere o Bispo de Portalegre, em convite feito ao escritor em 1926 para a sagração da catedral de Portalegre, lembrando que o mestre de cerimónias será um amigo comum: o Pe. Pereira dos Reis 12.
Podemos encontrar alguns paralelos estéticos e espirituais na trilogia social 13 de Manuel Ribeiro nos três romances de Huysmans 14, ambos com personagens em trânsito que se convertem ao catolicismo perante a arte das catedrais medievais e a beleza da liturgia. No entanto, julgamos que verdadeiramente estes escritores partilham uma apetência pela arte medie- val que os faz cristãos.
Quem primeiro terá se terá apercebido de certas semelhanças entre o misticismo espiritual de Manuel Ribeiro e Huysmans, com o apreço estético
que et modernité, Paris, CNRCS Editions, 2002. 11 Manuel RIBEIRO, A Catedral, Lisboa, Livraria Renascença, 1925, p. 296.
Seguimos a reedição de 1925 por ter ilustrações da Sé idealizada no romance. 12 BMBJS (Biblioteca Municipal de Beja José Saramago), Carta do Bispo de
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deste para com o escritor francês, com obras dedicadas à conversão ao catolicismo e gosto pela Idade Média, foi António Sardinha 15. Sardinha percebe a procura que o escritor português faz, no seu drama interior e conflitos ideológicos, por um caminho mais solitário e de pureza intelec- tual, que encontra num claustro. O integralista António Sardinha compara a figura de Durtal com a de Luciano e apreende as semelhanças entre ambos na procura da arte cristã como resposta aos seus problemas: um devota-se a Nossa Senhora de Chartres e outro a Santa Maria de Lisboa. Luciano continua o seu percurso pela Cartuxa de Miraflores, onde desco- bre a oração – tal como os monges que assim encontravam uma força inte- rior diferente –, e aquilo que Huysmans descobrira em A Rebours. O que os dois primeiros romances da trilogia social de Manuel Ribeiro represen- tam são aquilo a que o escritor gaulês chegou em En Route: a fé cristã. O mis- ticismo parece ter sido o porto seguro comum entre os dois autores. Manuel Ribeiro sonhando com um projecto mais vasto de renovação para a Humanidade e Huysmans, por sua vez, envolvendo as suas personagens num fim individual, físico, que os conduz à religião. É o caso da figura de Barbey d’Aurévilly, em A Rebours, que perante um dilema final de esco- lha entre o suicídio materializado por uma pistola e a salvação simbolizada pelo crucifixo que tem junto de si, opta pela conversão. O projecto de Ribeiro é mais universal e apologético, sonha com uma mobilização de todos, uma Revolução, após uma prévia redenção espiritual.
As «referências subtis» do ilustrado Sardinha levam a que o anarca Mário Domingues, num artigo de crítica literária 16, levante questões rela- cionadas com paralelos evidentes com a obra de Huysmans. Mas, acima de tudo, este comentador do jornal A Batalha não consegue compreender é o porquê de uma conversão à fé cristã, exortando mesmo Manuel Ribeiro para que esclareça junto dos leitores que o seu alto espírito era superior aos «manejos rasteiros cristãos» e chamando a atenção para os falsos elogios literários por parte dos reaccionários. O assunto da conversão do escritor de A Catedral já havia sido apontado, e este antigo companheiro de ideais de esquerda de Manuel Ribeiro não consegue esconder o pessimismo na defesa das ideias revolucionárias, que encontra em O Deserto, ao deparar
Portalegre, 14/02/1926. 13 A Catedral (1919), O Deserto (1922) e A Ressurreição (1923). 14 En Route (1895), La Cathédrale (1898), L’Oblat (1903). 15 Cf. António SARDINHA, “Misticismo e Revolução. A Volta do Espírito.
Manuel Ribeiro e Huysmans – O conflito de «O Deserto e o drama moral do «En Route»”, Diário de Lisboa, ano 2, n.º 425, 24/08/1922, p. 3.
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que Luciano, ao sair da Sé, em vez de se entregar a uma luta enérgica por uma sociedade nova se vai refugiar num convento. Para Mário Domin- gues, Ribeiro perdera ao aliara-se a uma filosofia dos «vencidos da vida», quando a ideologia que anteriormente partilhavam também pugnava por uma estética de «sentimentos sublimes de Solidariedade, de Bondade e de Beleza» 17.
No entanto, Manuel Ribeiro não escreve nenhum artigo face à sua pro- ximidade literária com Huysmans, certamente pela postura de intelectual discreto e asceta, que vivia isolado do mundo e que chama “cenóbio” ao seu próprio escritório, de decoração espartana. Apenas numa entrevista dada anos mais tarde, faz uma subtil referência às acusações que lhe haviam sido feitas, referindo-se à falta de «convivência entre os que se dedicam às letras...» 18.
Este escritor confina-se a um plano meramente intelectual e a sua obra, nomeadamente A Catedral, afirma-se como uma construção simbó- lica de beleza e misticismo passados à pedra, sendo, ao mesmo tempo, um livro de bolso sobre a arte gótica. Tal como Guido Battelli constata, um ano antes das referidas afirmações de Ribeiro, também este escritor ita- liano se revê numa partilhada admiração por Huysmans, essencialmente por ser: «un écrivain catholique» 19. Tal como o autor místico francês a que foi por vezes comparado, Manuel Ribeiro personifica a fórmula que constitui a maior semelhança entre ambos: o esteta fez o cristão.
A Catedral é a Sé de Lisboa, que aparece como um símbolo da Igreja e onde decorre todo o espaço do romance. A acção passa-se precisamente na sede do patriarcado, na sede da Igreja, é a Sedes, is latina. Luciano, per- sonagem principal, é o arquitecto a quem é confiado o restauro da Sé, pelo Patriarca de Lisboa. É nesta igreja que o jovem Luciano se vai cruzar com a Condessa de Monforte, com os cónegos, com os padres, com os operá- rios e o sindicalista, com a arte, com a política, com a religião, com os poderes oficiais e com os ocultos, com as diferentes crenças, valores e mentalidades. O mundo e todos os seus actores estão ou entram na Sé de Lisboa.
16 Cf. Mário DOMINGUES, “Uma Questão Literária. Ainda Manuel Ribeiro. Estranhesa natural – Um convite à valsa. . . – Avisos dum amigo que não quer ver perdida a reputação do seu amigo”, A Batalha, 22/08/1922, p. 1.
17 Mário DOMINGUES, “Uma Questão Literária. Manuel Ribeiro e a sua obra. Examina-se imparcialmente «O Deserto» e chega-se a conclusões pessimistas no que respeita à defesa das ideias revolucionárias”, A Batalha, 18/08/1922, p. 1.
18 “No «Cenobio de Papini»: Onde e como o Director da «Bandeira Vermelha»
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Na obra, as personagens simbolizam tópicos de uma problemática sobre a Igreja, quer no relacionamento interno dos clérigos, quer na rela- ção destes com figuras leigas não católicas. Os clérigos, residentes na Sé, incarnam diferentes sensibilidades teológicas, espirituais, e mesmo políti- cas, reveladoras da pluralidade existente no interior da hierarquia católica no início dos anos vinte. A jovem Condessa de Monforte, Maria Helena mais conhecida por Condessinha, simboliza a aristocracia que surge na obra de Manuel Ribeiro como mecenas, possibilitando os restauros ou os projectos inovadores. São os que possuem capelas ou propriedades e colo- cam os seus bens à disposição da Igreja, de modo à evangelização dos des- crentes. A antiga sociedade ainda aparece como referencial, estando ausentes as figuras do burguês e do político republicano.
A personagem fulcral de A Catedral é a de Luciano, figura em trânsito neste romance, vindo dos meios revolucionários, está num processo de descoberta da Igreja. Luciano é o arquitecto da remodelação da Sé e tem uma especial predilecção pela antiguidade medieval, em particular no que se refere à arte religiosa, apesar da ausência de piedade e da notória indi- ferença em matéria religiosa. O pensamento de Luciano subjacente ao res- tauro é o de encontrar as linhas originais, a pureza do edifício.
Através desta personagem, Manuel Ribeiro teve a percepção das dife- rentes atitudes internas no seio da Igreja e seu confronto. Notamos uma certa aproximação do real (social) que transparecia nas posições católicas. Os acontecimentos do principio do século, sobretudo a Lei da Separação (1911), originaram reacções diferentes no interior da Igreja. Este confronto atravessa todo o romance, simbolizado na controvérsia acerca do restauro da Sé: deve ou não restaurar-se a Sé (símbolo da Igreja)? Restaurar a Sé correspondia ao desejo de a libertar das sucessivas marcas da história que a afastavam das origens evangélicas, da verdade das origens: «é preciso despi-la da beleza falsa.» 20. «Antes as rugas veneráveis do que a maqui- lhagem de gesso.» 21. Não restaurar o edifício e mantê-lo era não querer questionar, era não se querer confrontrar com a verdade.
Para os eclesiásticos mais velhos, a presença dos operários era uma invasão, no sentido de tomarem uma opinião acerca da Igreja. Era uma Igreja instalada que sentia os outros diferentes como inimigos. Há aqui uma denúncia do processo de laicização: a Igreja ia perdendo protago- nismo social e sentia que os “homens modernos” e as suas ideias a punham
conheceu o «Homem do Saco». De como todo o Portugal o conhece. É um Santo, diz o autor do «Deserto»”, Diário de Notícias, ano 52, n.º 16255, 16/09/1928, p. 1.
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em causa. Permitir o restauro da Sé era permitir a entrada dos operários, para que eles, com o seu trabalho, lhe encontrassem as linhas originais. A ideia inerente apresentada por Manuel Ribeiro é a de que os “de fora” podem proporcionar aos “de dentro” o encontro com o Evangelho. Mas, para tal, é necessário que os “ímpios” tenham lugar no interior da Igreja.
Não é objecto de estudo deste trabalho a história do restauro da Sé de Lisboa 22. No entanto, pelo facto da obra A Catedral se centrar em torno dos restauros que o arquitecto Luciano faz na Sé, torna-se imprescindível perceber que obras decorriam na Catedral de Santa Maria em Lisboa no ano da primeira edição do livro (1919), quais os trabalhos que haviam sido realizados até aí e que obras de intervenção são idealizadas. De igual modo, não podemos deixar de comparar o restauro imaginado por Ribeiro, nos seus critérios estéticos, aos restauros efectivos operados pelo enge- nheiro Augusto Fuschini (entre 1902 e 1911) e pelo arquitecto Couto de Abreu (entre 1911 e 1942).
A Sé de Lisboa ao longo da sua antiguidade e culto permanente, foi sendo dotada no seu conjunto de diferentes estilos, sensibilidades estéticas e readaptações. Às mudanças de gosto acrescem as degradações naturais do tempo, tal como foi o terramoto de 1755, que provocou estragos sobre- tudo ao nível da torre sul da fachada, torre do cruzeiro e parte da capela- mor. Em finais do XIX a Sé apresenta uma planta reveladora de sucessivas épocas construtivas e com um espaço bastante fragmentado.
O século XIX, com uma sensibilidade romântica e historicista, trouxe as teorias de restauro puro, de modo a chegar-se à catedral ideal, com diversos intelectuais a dedicarem-se ao assunto. No que diz respeito à Sé de Lisboa, o nosso destaque vai para uma obra que julgamos ter tido espe- cial importância para Manuel Ribeiro relativamente à história da arte do monumento e aos seus restauros, assim como lança um desafio à denuncia de alguns destes últimos trabalhos de restauração. Trata-se da Lisboa Antiga, Bairros Orientais (1885, 1ª ed.), de Júlio de Castilho. Nesta obra, o 2º Visconde de Castilho insurge-se perante os restauros efectuados na Sé e aponta o exemplo dos trabalhos do restaurador Viollet-le-Duc na catedral de Paris, que por várias vezes cita. Anos mais tarde, o romancista e antigo jornalista Manuel Ribeiro escreve algo muito semelhante. Júlio de Cas- tilho, num capítulo da sua obra intitulado Brado em favor da restauração
19 BMBJS, Carta de Guido Battelli a Manuel Ribeiro, 23.08.1927. 20 Manuel RIBEIRO, Ibidem, 1925, p. 33. 21 IDEM, Ibidem, 1925, p. 17.
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da Sé de Lisboa, sugere uma metodologia apostada num restauro ideali- zado, sacrificando algumas épocas para uma situação de compromisso de valorização e analtecimento do período de D. Afonso IV 23.
É este o espírito de denúncia das alterações estilísticas e dos maus res- tauros realizados na Sé que Manuel Ribeiro irá seguir na A Catedral e que, anos antes, deixa expresso num mesmo tom num artigo de opinião de um jornal. Para o romancista, os restauros efectuadas por Fuschini não tiveram em conta o mestre medieval, por vezes demasiado imaginativo, e não tive- ram em conta sondagens mais conclusivas nos locais intervencionados para que se pudesse agir com maior segurança do restaurador. Apesar de reconhecer o trabalho do restaurador na procura de um estilo purista, afirma que este devia ter em conta aspectos da fisionomia primitiva da construção, não entrando em demasiados devaneios 24.
Quando em 1916, o escritor alude à ausência de grandes monumentos de arquitectura religiosa na capital – pois entende que essa monumentali- dade só é conseguida com uma catedral gótica –, encontramos já um esboço do seu futuro livro e ideia de catedral: «(...) uma dessas maravi- lhosas fábricas da Idade Média que é uma catedral gótica» 25. Apesar da inexistência de uma fábrica gótica em Lisboa, como noutros países euro- peus, havia na cidade um edifício comparável a outras grandes catedrais pela sua «alta tradição secular». Refere-se ainda que os restauros realiza- dos de uma forma metódica e criteriosa apenas começaram a ser efectua- dos pelo falecido engenheiro Fuschini. De capital importância para a percepção dos conhecimentos do escritor sobre a Sé é o facto deste referir que conhece nesse ano – estamos a três anos da publicação do primeiro livro da trilogia social –, o arquitecto Couto de Abreu, que lhe presta vários esclarecimentos sobre o decorrer dos trabalhos de restauro 26.
As ideias sobre o monumento artístico publicadas por Manuel Ribeiro neste ano de 1916 são, de uma forma sintética, aquilo que o livro expressou
22 Este assunto foi amplamente explanado por: Maria João Quintas Lopes Baptista NETO, “O Restauro da Catedral de Lisboa – Protótipo de uma Época”, op. cit. , 1996, pp. 505-573.
23 Cf. Júlio de CASTILHO, Lisboa Antiga. Bairros Orientais, 2ª ed. , vol. VI, Lisboa, S. Industriais da C.M.L., 1936, p. 225 e p. 228.
24 Manuel RIBEIRO, “ASé Patriarcal – A sua restauração, devida a Fuschini, tem sido apreciada com demasiado pessimismo”, A Capital, 21/01/1916.
25 Manuel RIBEIRO, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital, 27/01/1916, p. 1.
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mais tarde nos projectos levados a cabo pela imaginária personagem de Luciano, assim como nas futuras realizações dos trabalhos de restauro de António Couto, diferente das impressões demasiado compósitas de Fus- chini acerca do antigo monumento. Pelo que, passamos a enumerar as principais linhas orientadoras da concepção ideal de restauro da Sé de Lisboa proposta por Manuel Ribeiro: valorização do românico ligado à fundação do edifício, nomeadamente na fachada e corpo da igreja, com a reconstrução de naves em abóbada de berço; reconstrução de uma capela- -mor gótica para valorização da charola do tempo de D. Afonso IV e que funcionasse como coroamento de toda a planta do templo. Anos mais tarde, em 1931, o escritor publica uma monografia sobre a história da arte da Sé de Lisboa, quando ainda não se tinham realizado grande parte dos restauros, como os que deram uma feição medieval às naves da catedral no decorrer da década de trinta. Neste livro encontramos o mesmo princípio de associar a fundação do monumento a D. Afonso Henriques, sendo por isso essencialmente românico, conferindo-lhe um principio unicamente cristão, ligado ao primeiro rei e isento de quaisquer parentescos árabes. De igual modo, a planta idealizada para o edifício é a de um corpo românico tonsurado por uma capela gótica.
Quando o primeiro romance da trilogia é publicado, já tinham surgido alguns planos de intervenção na Sé de Lisboa. Em 1902, começou um plano global de intervenção, antecedido por trabalhos essencialmente ligados a pequenas obras. De 1902 a 1911 temos à frente dos trabalhos o engenheiro Augusto Fuschini, então Presidente do Conselho Superior de Monumentos. Como já atrás foi referido, este técnico entende a sua actividade, enquanto interveniente, como algo meramente patriótico e reformula o edifício com um critério de mera idealização, mesmo com o prejuízo do novo desenho ser pouco fiel à verdade histórica do monumento. Nas soluções por este apontadas ligavam-se, de uma forma heterogénea, formulários estéticos bizantinos, românicos e góticos, com clara preferência por este último, con- forme testemunham alguns projectos para o exterior. Este apego ao gótico levam-no a coroar as torres da fachada com duas agulhas octogonais, numa tentativa de «goticisar» (ou afrancesar à Notre-Dame de Paris?) a Sé. O gótico deveria ser a linha orientadora de toda a sua intervenção 27.
A morte de Fuschini, em 1911, permitiu concluir apenas parte do pro- jecto na ala norte exterior do edifício. Sucede-lhe António do Couto Abreu,
26 Manuel RIBEIRO, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital,
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a partir de 1911, que começa de imediato a demolir algumas propostas do seu antecessor no cargo de restaurador da catedral, como foi o caso das fle- chas colocadas nas torres da fachada. Desta primeira intervenção ficaram alguns registos fotográficos e uma aguarela de Alberto Sousa, de 1917, pintura muito semelhante à que ilustrará uma das edições de A Catedral (1925). Esta edição apresenta a imagem de uma catedral então inexistente, a não ser na imagem que Manuel Ribeiro ergueu no papel e que, decerto, Couto Abreu não podia então apenas imaginar, dadas as dificuldades eco- nómicas da I República. Até 1926, a falta de verbas para as obras da Sé parecem ter sido uma constante, chegando mesmo a ser retirado material essencial ao normal prosseguimento das obras, como um referido guin- daste emprestado pelo Porto de Lisboa, dados os racionamentos que a I Grande Guerra provocava, ou a falta de pessoal operário para o normal prosseguimento dos trabalhos, em virtude das constantes guerras ocorridas durante este período, as quais Couto Abreu dava conhecimento aos seus superiores através de relatórios.
Couto de Abreu era um ardente defensor das intervenções de Viollet- -le-Duc, norteado pelo objectivo de repor o edifício na sua pureza româ- nica. No entanto, este arquitecto, tal como o arquitecto Luciano, prefere valorizar os antigos vestígios da ábside gótica, em maior predominância arqueológica, em detrimento das marcas da capela-mor românica primi- tiva. Contudo, a intervenção idealizada para o espaço da capela-mor nunca passou de um desenho que contemplava amplas janelas com arcos quebra- dos e vitrais e nove capelas ogivais na charola.
Só após a Revolução de Maio de 1926, que impôs a ditadura militar reaccionária, génese do Estado Novo, se abriu o caminho para que o Mi- nistério das Obras Públicas (M.O.P.) recebesse a chefia da supervisão dos monumentos, através da Administração-Geral. Em 1929, as obras nos monumentos são definitivamente centralizadas num organismo específico do M.O.P., a Direcção-Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais, cujo papel na área do restauro de património arquitectónico será fulcral como forma de legitimação histórica do novo regime, através dos grandes docu- mentos arqueológicos, que o recente poder se dizia herdeiro. É neste último cenário de exaltação histórica que se desenvolve grande parte da acção e ideias do arquitecto Couto Abreu na Sé, entre 1929 e 1942, supor- tado fortemente de um ponto de vista ideológico e económico por um Governo que também queria ter na catedral da capital um símbolo de robustez, tão sólido quanto a nova ordem e tão inabalável quanto a verdade histórica da formação da nacionalidade.
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A grande tarefa do arquitecto Luciano ao restaurar a Sé de Lisboa é a de descobrir as verdadeiras formas da catedral, apesar da falta de fontes históricas de que se queixa. As intervenções de restauro feitas até Luciano são enunciadas como simples reparações devido à falta de capacidade eco- nómica para tamanho projecto 28. Pelo que, o que este procura é «determi- nar a pureza» primitiva do edifício, escondida «sob o invólucro sacrílego de estuques e argamassas (...)» 29.
O relacionamento do arquitecto Luciano com a Sé é quase físico, sendo evidentes os paralelismos entre uma procura de pureza arquitectó- nica e a busca de pureza na alma humana. O projecto inicial de restauro do arquitecto Luciano parece todavia incerto. «Sei lá ainda!» 30 diz o mesmo relativamente à questão colocada: por onde iniciar os trabalhos? Para Luciano, certas eram as necessidades de se fazerem prospecções, como acontecerá relativamente às sondagens feitas na procura da cripta 31 e nas paredes da ábside 32, conforme se explicitará ao longo deste capítulo. Certo, na restauração, é a ideia de conferir um risco às ruínas da Sé semelhante ao que teriam feito outrora os mestres medievais.
Por diversas vezes são referidas, na óptica de Luciano (que é na ver- dade a opinião de Manuel Ribeiro), o desconhecimento histórico acerca do edifício e as devastações artísticas causadas à igreja pelas confrarias aí existentes e por uma má administração eclesiástica.
O restauro proposto é entendido como uma limpeza, uma acção de purificação dos excessos causados por trabalhos posteriores à concepção original 33.
Manuel Ribeiro estava, decerto, informado sobre os descontenta- mentos provocados que os incómodos das obras causaram junto dos reli- giosos. É exemplificativo desta ideia um documento lavrado em 1918, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, dirigido ao arquitecto Couto Abreu e onde são enumerados os referidos desconfortos causados pelas obras, num tom muito semelhante às queixas que o arquitecto Luciano encontra 34.
27/01/1916, p. 1. 27 Augusto FUSCHINI, A Architectura Religiosa na Edade-Média, Lisboa, 1904,
Imprensa Nacional, p. 164. 28 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 18. 29 IDEM, Ibidem, 1925, p. 15. 30 IDEM, Ibidem, 1925, p. 23. 31 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 149. 32 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 66.
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No entanto, nem todos estavam contra o trabalho de Luciano. Quer Maria Helena Monforte, quer o Padre Anselmo haviam percebido a pro- cura da pureza original do edifício que Luciano, aos poucos, ia desco- brindo.
Para Luciano a «restauração era uma ressurreição» 35, cabia-lhe a ele a obrigação e o dever de resgatar o velho edifício, purificá-lo, numa ope- ração que é acima de tudo percebida como limpeza dos séculos posterio- res à Idade Média, retirando-lhe todos os outros formulários estéticos que o tempo acrescentara. Restaurar, redescobrir, ressuscitar, renascer, são as palavras propostas como símbolo da intervenção.
Das intervenções enumeradas no livro, recebem maior destaque as executadas no claustro, na ábside e deambulatório, e na procura da cripta da catedral, a última sondagem e que está na origem da construção de uma capela nova, como à frente se referirá. Luciano enumera como grandes descobertas das suas escavações arqueológicas: a identificação de um fecho de uma abóbada de uma capela da charola; os vestígios da abside românica do tempo de D. Afonso Henriques, junto à capela de S. Vicente; o desem- paredamento do trifório do século XII, obstruído por uma arcaria clássica do tempo de D. Pedro II 36; e descoberta dos fragmentos de uma grande rosácea do século XII existente na fachada 37.
O claustro é referido como sendo grave e austero, de uma auste- ridade de cariz cisterciense, anterior à ábside gótica do tempo de D. Afonso IV, facto que implica a sua mutilação para a construção da nova capela gótica: «Era inevitável o sacrifício. Não havia que hesitar.» 38. Pelo que o claustro seria de raíz românica uma vez que, segundo as pes- quisas do arquitecto Luciano, teria as abóbadas em muros trabalhados anteriormente, assim como as nervuras de secção poligonal seriam de uma feição mais primitiva, ao passo que as nervuras da charola da capela-mor já respiravam a «elegância da factura ogival» 39. A passagem do claustro para o deambulatório, pela Porta escura, representa a prefe- rência do autor pela arte gótica, carregada por uma reverência espiritual para com este estilo 40.
33 IDEM, Ibidem, 1925, p. 33. 34 Arquivo da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. Sé de
Lisboa. Carta da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Sé Patriarcal. 06.05.1918. 35 IDEM, Ibidem, 1925, p. 107. 36 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 223. 37 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 52.
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Luciano reconhece que o deambulatório era essencialmente gótico, pela sua forma poligonal, mostrando ao Padre Anselmo uma planta por si realizada com as nove capelas góticas do século XIV, então escondidas na amálgama dos adulterações existentes 41. De modo a comprovar esta teo- ria, o arquitecto manda os operários escavar nas traseiras da ábside e a prospecção vem confirmar a existência de uma cabeceira gótica 42.
As ideias do arquitecto acabam por ser confirmadas e isso justifica a planta por ele traçada, que apresenta à condessinha e ao presbíero seus amigos, muito semelhante na descrição à que Manuel Ribeiro refere numa monografia sobre a Sé, em 1931 43. Para Luciano, a cabeceira teria uma dis- tribuição de pedraria em fiadas concêntricas, com um alinhamento simé- trico de arestas em toda a radiação do desenho.
Quanto à nave da catedral, então com a aparência de «um hierático manequim grotescamente travestido» 44, apresentava um aspecto pouco condigno para uma nave românica original do tempo de D. Afonso Hen- riques. Segundo o arquitecto encarregado dos restauros, a nave central do século XII podia ser comparada a uma alameda de árvores, mostrando assim o autor uma visão orgânica e estrutural do gótico.
Mas, o apreço do arquitecto restaurador não se fez sentir só pelo gótico da ábside ou pela nova capela do eixo da mesma que decide recriar. O românico, arte predominante na Sé, é valorizado não só enquanto único estilo desta corrente estilística existente em Lisboa, mas também como sinónimo de uma arte que remontava ao início da nacionalidade portu- guesa, e por isso lido como algo de robusto, o primeiro sólido alicerce nacional, que impunha confiança pelo sua «severidade austera», e que «(...) por ser irmão gémeo da liturgia e do cantochão, é a arquitectura que mais convém à Igreja.» 45, nas palavras de Pe. Anselmo. O exemplo estru- tural que é apresentado desse edifício sólido são as suas abóbadas de berço, que exigiam maciços sólidos para suporte do peso 46.
O período após D. João I é tido como o início de decadência artística da Catedral, coincidindo com o abandono das artes com a gesta dos Des- cobrimentos. Luciano acusa D. Manuel, responsável por um estilo próprio
38 IDEM, Ibidem, 1925, p. 25. 39 IDEM, Ibidem, 1925, p. 26. 40 IDEM, Ibidem, 1925, p. 27. 41 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 28. 42 IDEM, Ibidem, 1925, p. 66. 43 IDEM, A Sé de Lisboa – A Arte em Portugal, Porto, Marques Abreu, 1931.
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e por tantas obras feitas na capital, de não ter dado uma única pedra à Sé de Lisboa, assim como os seus descendentes.
Para o arquitecto, todos os templos da capital eram demasiado «moder- nos e ateatrados», à excepção do Jerónimos, mas cujo gosto lhe parecia demasiado estranho, demasiadamente decorativo, para a sua visão da sen- sibilidade dos artistas medievais 47.
A falta de sensibilidade de Manuel Ribeiro para o gótico-manuelino parece ter, de facto, marcado uma constante no seu pensamento para com esta expressão artística, onde não encontra a espiritualidade da antecedente arte medieval. Ainda antes do livro A Catedral, em 1916, encontra nos Jerónimos um espaço grandioso ligado à descoberta do caminho marítimo para a Índia, mas «sem mistério nem religiosidade» 48, ainda para mais conspurcado com uma capela-mor clássica.
Em 1929, referia-se à Sé de Évora como a maior «manifestação gran- diosa do ciclo cristão», que não se repetiu. Refere-se ao naturalismo ma- nuelino como algo essencialmente decorativo, espalhado pela província alentejana com um «hibridismo manuelino-mourisco», que conferia uma feição algo interessante às construções no Alentejo 49.
Comparável à decadência do período das descobertas só os restaura- dores do século XVIII, cujo único trabalho fora o de forrar o edifício da Sé de Lisboa com estuques e cores garridas, sem respeito pela verdadeira arquitectura do monumento:
«(...) betumaram-lhe as fracturas, vestiram-na de trajes garridos, bar- raram-lhe as rugas de cremes (...).» 50.
O livro abre ainda campo para o espírito da recriação, tão ao gosto do arquitecto francês Viollet-le-Duc. A ideia surge inicialmente em virtude de Luciano procurar encontrar na catedral de Lisboa uma cripta, à seme- lhança do que acontecia noutras catedrais, tal como em Mans. Assim, são feitas pesquisas nesse sentido, em «sondagens na colateral norte junto à porta travessa», mas o que este encontra é uma longa galeria abobadada na direcção norte-sul, interceptada pelo jazigo de D. Rodrigo da Cunha.
44 IDEM, Ibidem, 1925, p. 31. 45 IDEM, Ibidem, 1925, p. 224. 46 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 228. 47 Cf. IDEM, Ibidem, 1925, p. 233. 48 RIBEIRO, Manuel, “Monumentos de Lisboa – A Sé Patriarcal – O que é esse
venerando templo ao cabo de oito séculos de inclemencias e provações”, A Capital, 27/01/1916, p. 1.
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Perante o paralelo sistemático feito por Luciano com as catedrais france- sas, a partir do século XII, este não esconde a desilusão de não encontrar uma cripta e no eixo da capela-mor uma capela dedicada à Virgem que, de uma forma simbólica, velava à cabeceira do Filho morto. É então que a condessinha de Borba, Maria Helena, tem a seguinte ideia:
«E se nós erguêssemos no deambulatório da Sé uma capela da Virgem, como a da catedral francesa?» 51.
Manuel Ribeiro aflora a questão da recriação de um novo edifício sacrificando todas as outras manifestações artísticas de séculos posterio- res, colocando assim em debate a discussão em torno dos restauros pu- ristas. Na figura do Cónego Fulgêncio, surge um ataque à actividade restauracionista:
«E crês tu que atacando com a tua cirurgia a cirrose destes muros lhes dás a vida que eles tiveram?» 52
De igual modo, o velho Cónego Fulgêncio critica outro ponto caro aos restauradores puristas: as destruições causadas pelas obras. A título da pro- curada origem do monumento iam sendo sacrificadas todas as épocas pos- teriores ao período medieval, o que correspondia a um desrespeito pela história de toda a arquitectura cristã 53.
No entanto, nas palavras de Luciano é evidente o seu desejo de um restauro maior, para além da reposição pedra por pedra, do portal à ábside. O sonho de Luciano traduz-se, de facto, por uma nova Igreja mais de acordo com os princípios da primitiva, que é o projecto do ideólogo Manuel Ribeiro:
«Não será a arte uma nova religião capaz de restituir a vida à velha Sé?» 54
O escritor liga a ideia de um requerido primitivismo arquitectónico a uma pureza da arte e dos católicos dos primeiros séculos da Igreja. Deste modo, quando Luciano, no último livro da série social, A Ressur- reição, chega a Roma, fica impressionado com a monumentalidade da cidade barroca da Contra-Reforma, mas não lhe encontra a espirituali- dade desejada que vê nas igrejas góticas carregadas de teologia e senti- mento evangélico.
49 Cf. Manuel RIBEIRO, O Alentejo. Exposição Portuguesa de Sev ilha, Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1929, pp. 24-25.
50 IDEM, A Catedral, 1925, p. 32. 51 IDEM, Ibidem, 1925, p. 149.
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Ainda assim, Luciano acredita que o seu trabalho não é o de uma «simples reparação» 55, nem que a sua acção seja capaz de alcançar uma espiritualidade dos antigos, embora a função do artista fosse de igual modo espiritual.
Considerações finais
Manuel Ribeiro teve como modelos literários das «Catedrais de Papel» em parte graças ao esforço e talento de escritores como Vítor Hugo. Este autor é o grande líder dos «construtores» literários de catedrais e dos divulgadores da arte gótica, ou medieval, em versões de pequenos livros de bolso acessíveis a qualquer leitor, que se assumem como uma metáfora de um museu de imagens medievais. Outro autor analisado, Huysmans, considera, ao contrário da crítica feita à Igreja de Hugo, a arte religiosa produzida nas catedrais como um sinónimo de uma linguagem franca e de um clero sincero e virtuoso para com os cristãos. Encontra na Idade Média o ponto alto da civilização, por se tratar de um longo período onde impe- rou o principio cristão. É nesta última linha de pensamento que melhor se reproduzem os conceitos estéticos de Manuel Ribeiro.
Manuel Ribeiro é um esteta sensível à arte cristã medieval: à arqui- tectura e à liturgia monástica. Durante a guerra, sem poder desenvolver a sua actividade sindicalista, levava os operários a visitar igrejas. O próprio escritor começou a frequentar a Sé de Lisboa e a assistir aos ofícios litúr- gicos. Pelo que, em primeiro lugar, A Catedral é uma descrição de emo- ções estéticas. Para além de que o entusiasmo ao longo de todo o livro em torno do restauro da Sé é, também, o entusiasmo em encontrar as suas ori- gens mais remotas. Restaurar, significa não só libertar a Igreja de todos os acrescentos e adulterações ocorridos ao longo dos tempos que escondiam a pureza original do edifício, significa também a necessidade de encontrar a beleza primitiva do monumento, o mesmo é dizer também, e de “restau- rar” uma Igreja mais evangélica. Não restaurar o edifício, mantendo as alterações que sofrera o longo do tempo, significa não querer questionar, não se querer confrontrar com a verdade histórica presente. A ideia sempre subjacente é a de um restauro Maior.
Manuel Ribeiro confina-se a um plano meramente intelectual e A Cate- dral, afirma-se como uma construção simbólica de beleza e misticismo passa- dos à pedra, sendo, ao mesmo tempo, um livro de bolso sobre a arte gótica.
52 IDEM, Ibidem, 1925, p. 284. 53 IDEM, Ibidem, 1925, p. 288. 54 IDEM, Ibidem, 1925, p. 284. 55 IDEM, A Catedral, 1925, p. 286.
199A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
Fi g . 1 - Fachada principal da Sé de Lisboa segundo o restauro ideali- zado de A Catedral. Desenho de Alfredo Cândido. Edição 1925.
Fi g . 2 - Fachada principal. Década de 1940. AFCML –
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Podemos constatar que Manuel Ribeiro conhecia bem o edifício da Sé de Lisboa, as alterações provocadas pelos restauros operados pelo enge- nheiro Augusto Fuschini (entre 1902 e 1911), assim como as intenções idealizadas pelo arquitecto Couto de Abreu, que conduz os trabalhos de restauro após 1911. A acção do livro decorre em 1919 e, quer os restauros idealizados no livro quer a ideia concebida em restituir o monumento segundo o estilo primitivo mais de acordo com a sua história gloriosa medieval, se confundem com o que foi realizado anos mais tarde pelo arquitecto Couto de Abreu (Fig. 1 e 2). Podemos afirmar, sem grandes receios, que a personagem do Arquitecto Luciano partilha no romance os conceitos de intervenção no monumento com Couto Abreu e a espirituali- dade e gostos estéticos com o «arquitecto» Manuel Ribeiro.
Manuel Ribeiro não encontra na Sé de Lisboa a monumentalidade das grandes catedrais góticas, mas entende a catedral da capital como um edi- fício comparável à suas congéneres europeias pela sua «alta tradição secu- lar». Assim, critica Fuschini na sua tentativa de «goticizar» o corpo românico da Sé, já que a sua visão está mais de acordo com um conceito artístico ligado ao principio da nacionalidade. A Sé é associada a D. Afonso Henriques, sendo por isso essencialmente românica, e é isso que lhe con- fere um principio unicamente cristão.
Manuel Ribeiro conhece Couto Abreu em 1916, que foi certamente uma influência determinante para as principais linhas orientadoras da sua concepção de restauro ideal da Sé de Lisboa. Este “restauro ideal” pro- posto por Manuel Ribeiro em A Catedral será efectivo anos mais tarde exactamente pela mão de Couto de Abreu. Trata-se de uma imagem que Manuel Ribeiro ergueu no papel e que, em 1919, Couto Abreu não podia então apenas idealizar: a valorização do românico ligado à fundação do edifício, nomeadamente na fachada e corpo da igreja, a reconstrução de naves em abóbada de berço; a reconstrução de uma capela-mor gótica para valorização da charola do tempo de D. Afonso IV que funcionasse como coroamento de toda a planta do templo (Fig. 3 e 4).
Tal como Viollet-le-Duc, Manuel Ribeiro, que fala pela boca da sua personagem arquitecto Luciano, é norteado pelo objectivo de repor o edi- fício na sua pureza primitiva, a românica. Anos mais tarde, é num cenário de exaltação histórica, entre 1929 e 1942, que se desenvolve grande parte da acção e das ideias do arquitecto Couto Abreu na Sé.
Para Luciano a «restauração era uma ressurreição». “Restaurar”, “redes- cobrir”, “ressuscitar”, “renascer”, são as palavras propostas como símbolo da intervenção. É Viollet-le-Duc que vai ajudar este autor de um monumento erguido sobre caracteres na escolha efectiva e mais exclusiva do sistema
201A «CATEDRAL DE PAPEL» DO ESCRITOR MANUEL RIBEIRO (1878-1941)
Fi g . 3 - Pormenor da Charola segundo o restauro idealizado. Desenho de Alfredo Cândido em A Catedral. Edição 1925.
Fi g . 4 - Aspecto geral da Charola (Sul) após os res- tauros. AFCML
202 JOSÉ ALBERTO RIBEIRO
gótico, que justificava as recriações mais imaginativas do arquitecto pela arte medieval consentânea do monumento de Lisboa. Luciano, tal como o mestre francês de que é herdeiro, vê o gótico como um sistema estrutural, um jogo de peças único, onde o arquitecto é principalmente construtor e onde a arte medieval se afirma como a melhor forma de conservação de um edifício, por lhe devolver uma função, um destino, que legitimava as alterações ou modificações propostas por quem dirigia os trabalhos.
Manuel Ribeiro é uma figura da intelectualidade portuguesa impres- cindível para a compreensão da segunda década do novo século XX e um exemplo de outros intelectuais que procuravam uma pureza original da sociedade num sentido mais lato, onde a Igreja assumiu um lugar fulcral pelo seu papel na sociedade. Manuel Ribeiro alimentava a ideia de um mundo diferente após uma revolução ainda por fazer, o fulcro da sua preo- cupação é o da justiça social como denominador comum de uma socie- dade futura. A Igreja, enquanto instituição secular, é onde Manuel Ribeiro vai procurar uma solução para o mundo e acaba por encontrar o sentido e harmonia social na beleza religiosa e na beleza da liturgia católica.
Mas, é uma nova Igreja que este teórico procura, não a instituição cumulada de privilégios e que reconhece as desigualdades sociais que a modernidade não conseguiu resolver. Daí, a procura de uma Igreja mais evangélica, também em busca de um restauro, por um restauro maior, em suma, de um renascimento, um «mundo novo» que precisava de homens imaculados como São Francisco de Assis ou o Padre Cruz.
Vamos encontrar nas obras estudadas o espírito de um revolucionário que precisa de crescer interiormente, a ideia de uma revolução interior para atingir uma militância com valores morais mais altos: a religião. Propõe um homem novo, mais espiritual e à semelhança dos monges da Cartuxa de Miraflores, tal como os descreve em O Deserto. Trata-se da busca de homens que, à imagem do primeiro apostolado, ajudem a cons- truir uma nova sociedade, tal como São Pedro ou São Paulo o fizeram. Uma das razões das inúmeras referências aos primeiros mártires cristãos é precisamente a sua fé, autêntico acto de missão maior, que vai ao ponto do sacrifício da própria vida. A ideia subjacente é a de uma militância que só o cristianismo conseguia imprimir. Se foi sobre as catacumbas dos primei- ros cristãos que surgiu o novo mundo desprendido de bens materiais o regresso aos valores primitivos da pureza evangélica – e concretamente à ideia de gótico – garantirá, para Manuel Ribeiro, a construção de uma nova sociedade ideal no conturbado início do século XX português.
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