Date
2009-01-01
Description
Este artigo busca refletir sobre uma experimentação singular de pesquisa em
educação ambiental. O objetivo central do texto é mostrar os descaminhos
metodológicos da investigação e seus modos intricados de construção, concernentes
aos desejos políticos dos autores. Não concedemos no artigo uma importância às
explicitações das articulações teóricas da pesquisa, que são, apenas, pinçadas e
marcadas sutilmente ao longo do texto. A investigação buscou inspiração em uma
educação ambiental pós-moderna, articulada teoricamente ao campo multifacetado e
contestado dos estudos culturais e pretendeu promover deslocamentos nos modos de
ver, narrar e pensar um parque urbano de proteção ambiental localizado na região
metropolitana de Florianópolis, Sul do Brasil. Tal local é comumente visto e narrado
como “desértico” e abandonado, como um lugar de “estranhos”, pelos moradores do
seu entorno, tal como evidenciamos em uma pesquisa preliminar em que colhemos
depoimentos desses sujeitos. Ao convidá-los a adentrar o parque e tirar fotografias do
mesmo, a pesquisa tentou provocar deslocamentos nesses modos recorrentes de ver
e narrar, buscando traçar por entre as imagens algumas linhas de fuga. Entre imagens
e deslocamentos pelo parque emergiram marcas de infância, projetos de futuro,
desejos de lazer, potencialidades diferenciais de convívio. Mais do que traçar
deslocamentos nos olhares e nas narrativas dos sujeitos, as quais nós não queríamos
controlar, instaurando um modo pretensamente nosso de ver, concluímos que a
experimentação provocou em nós mesmos, pesquisadores, uma diferença. Nem o
parque, nem nós permanecemos mais os mesmos. - This article intends to reflect about a singular experimentation in environmental
education. The central purpose of the text is to show the investigation methodological
off ways and their construction forms, related to the authors’ political wishes. In the
article, we do not grant importance to the explanation of the theoretical bases. They
are, only, tenuously indicated throughout the text. The investigation was inspired in a
post-modern environmental education, theoretically articulated at the contested,
multifaceted field of the cultural studies. In addition to that, the text intends to promote
dislocations in the forms of viewing, narrating and thinking about a urban park
environmentally protected in the metropolitan region of Florianópolis, South of Brazil.
This place is commonly seen and referred to as ‘desertic’, ‘abandoned’, a ‘weird
people’s place’ by neighborhood residents, as we show clearly in a preliminary reserch
in which we get testimonies of these subjetcs. When they were invited to enter the park
and take photos, the reserch tried to provoke changes in the usual manners of seeing
and relating. By doing that, we tried to delineate through the images some different
views. Through images and displaces across the park, childhood memories emerged,
future projects, leisure wishes, difference social contacts. More than provoking
displaces in the views and narratives of the subjetcs, in which we did not want to
control and/or to impose our manner of seeing, we concluded that the experimentation
provoked a difference. Neither we, nor the park stayed the same.
educação ambiental. O objetivo central do texto é mostrar os descaminhos
metodológicos da investigação e seus modos intricados de construção, concernentes
aos desejos políticos dos autores. Não concedemos no artigo uma importância às
explicitações das articulações teóricas da pesquisa, que são, apenas, pinçadas e
marcadas sutilmente ao longo do texto. A investigação buscou inspiração em uma
educação ambiental pós-moderna, articulada teoricamente ao campo multifacetado e
contestado dos estudos culturais e pretendeu promover deslocamentos nos modos de
ver, narrar e pensar um parque urbano de proteção ambiental localizado na região
metropolitana de Florianópolis, Sul do Brasil. Tal local é comumente visto e narrado
como “desértico” e abandonado, como um lugar de “estranhos”, pelos moradores do
seu entorno, tal como evidenciamos em uma pesquisa preliminar em que colhemos
depoimentos desses sujeitos. Ao convidá-los a adentrar o parque e tirar fotografias do
mesmo, a pesquisa tentou provocar deslocamentos nesses modos recorrentes de ver
e narrar, buscando traçar por entre as imagens algumas linhas de fuga. Entre imagens
e deslocamentos pelo parque emergiram marcas de infância, projetos de futuro,
desejos de lazer, potencialidades diferenciais de convívio. Mais do que traçar
deslocamentos nos olhares e nas narrativas dos sujeitos, as quais nós não queríamos
controlar, instaurando um modo pretensamente nosso de ver, concluímos que a
experimentação provocou em nós mesmos, pesquisadores, uma diferença. Nem o
parque, nem nós permanecemos mais os mesmos. - This article intends to reflect about a singular experimentation in environmental
education. The central purpose of the text is to show the investigation methodological
off ways and their construction forms, related to the authors’ political wishes. In the
article, we do not grant importance to the explanation of the theoretical bases. They
are, only, tenuously indicated throughout the text. The investigation was inspired in a
post-modern environmental education, theoretically articulated at the contested,
multifaceted field of the cultural studies. In addition to that, the text intends to promote
dislocations in the forms of viewing, narrating and thinking about a urban park
environmentally protected in the metropolitan region of Florianópolis, South of Brazil.
This place is commonly seen and referred to as ‘desertic’, ‘abandoned’, a ‘weird
people’s place’ by neighborhood residents, as we show clearly in a preliminary reserch
in which we get testimonies of these subjetcs. When they were invited to enter the park
and take photos, the reserch tried to provoke changes in the usual manners of seeing
and relating. By doing that, we tried to delineate through the images some different
views. Through images and displaces across the park, childhood memories emerged,
future projects, leisure wishes, difference social contacts. More than provoking
displaces in the views and narratives of the subjetcs, in which we did not want to
control and/or to impose our manner of seeing, we concluded that the experimentation
provoked a difference. Neither we, nor the park stayed the same.
Type
Identifier
GUIMARÃES, Leandro Belinaso; SANTOS, Juliana Evelyn dos - Entre imagens e deslocamentos: descaminhos de uma pesquisa em educação ambiental. Revista Interacções. Nº11 (2009), p.91-102
1646-2335
Language
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INTERACÇÕES NO. 11, PP. 91-102 (2009)
http://www.eses.pt/interaccoes
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS: DESCAMINHOS DE UMA PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Leandro Belinaso Guimarães PPGE/Universidade Federal de Santa Catarina
lebelinaso@uol.com.br
Juliana Evelyn dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina
dot_ju@yahoo.com.br
Resumo
Este artigo busca refletir sobre uma experimentação singular de pesquisa em
educação ambiental. O objetivo central do texto é mostrar os descaminhos
metodológicos da investigação e seus modos intricados de construção, concernentes
aos desejos políticos dos autores. Não concedemos no artigo uma importância às
explicitações das articulações teóricas da pesquisa, que são, apenas, pinçadas e
marcadas sutilmente ao longo do texto. A investigação buscou inspiração em uma
educação ambiental pós-moderna, articulada teoricamente ao campo multifacetado e
contestado dos estudos culturais e pretendeu promover deslocamentos nos modos de
ver, narrar e pensar um parque urbano de proteção ambiental localizado na região
metropolitana de Florianópolis, Sul do Brasil. Tal local é comumente visto e narrado
como “desértico” e abandonado, como um lugar de “estranhos”, pelos moradores do
seu entorno, tal como evidenciamos em uma pesquisa preliminar em que colhemos
depoimentos desses sujeitos. Ao convidá-los a adentrar o parque e tirar fotografias do
mesmo, a pesquisa tentou provocar deslocamentos nesses modos recorrentes de ver
e narrar, buscando traçar por entre as imagens algumas linhas de fuga. Entre imagens
e deslocamentos pelo parque emergiram marcas de infância, projetos de futuro,
desejos de lazer, potencialidades diferenciais de convívio. Mais do que traçar
deslocamentos nos olhares e nas narrativas dos sujeitos, as quais nós não queríamos
controlar, instaurando um modo pretensamente nosso de ver, concluímos que a
experimentação provocou em nós mesmos, pesquisadores, uma diferença. Nem o
parque, nem nós permanecemos mais os mesmos.
92 GUIMARÃES E SANTOS
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Palavras-chave: Educação ambiental; Fotografia; Estudos culturais.
Abstract
This article intends to reflect about a singular experimentation in environmental
education. The central purpose of the text is to show the investigation methodological
off ways and their construction forms, related to the authors’ political wishes. In the
article, we do not grant importance to the explanation of the theoretical bases. They
are, only, tenuously indicated throughout the text. The investigation was inspired in a
post-modern environmental education, theoretically articulated at the contested,
multifaceted field of the cultural studies. In addition to that, the text intends to promote
dislocations in the forms of viewing, narrating and thinking about a urban park
environmentally protected in the metropolitan region of Florianópolis, South of Brazil.
This place is commonly seen and referred to as ‘desertic’, ‘abandoned’, a ‘weird
people’s place’ by neighborhood residents, as we show clearly in a preliminary reserch
in which we get testimonies of these subjetcs. When they were invited to enter the park
and take photos, the reserch tried to provoke changes in the usual manners of seeing
and relating. By doing that, we tried to delineate through the images some different
views. Through images and displaces across the park, childhood memories emerged,
future projects, leisure wishes, difference social contacts. More than provoking
displaces in the views and narratives of the subjetcs, in which we did not want to
control and/or to impose our manner of seeing, we concluded that the experimentation
provoked a difference. Neither we, nor the park stayed the same.
Keywords: Environmental education; Photographs; Cultural studies.
Em um belo conto de Clarice Lispector (1998), a personagem principal, Ana,
chega, quase sem querer, a um Jardim Botânico. No conto, este espaço tão comum
em trabalhos de educação ambiental (chamados de não-formais, mas que atendem
alunos do ensino escolar formal), não estava composto para ser compreendido,
explicado, ensinado. Havia, acompanhando os andares de Ana por aquele enigmático
Jardim, silêncios, sons, espantos, estranhamentos. Quem não pergunta sobre aquele
estranho lugar, mas sobre essa forasteira figura que atende pelo nome de Ana?
Educadores ambientais construiriam suas indagações focando o Jardim Botânico ou a
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vida de Ana que caminhava, repentinamente, por aquele espaço?
Os perigos nos dias de Ana estavam marcados por certa hora da tarde. Aqueles
momentos em que tudo em sua casa já estava limpo, encaminhado e organizado.
“Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se” (Lispector, 1998, p.19). Sua
precaução era cuidar dessa hora perigosa da tarde. Temos também uma hora
perigosa da tarde em nossas vidas? Ela se reverbera ou permanece guardada quando
estamos praticando educação ambiental?
Em um dia qualquer, Ana estava sentada em um bonde (ainda havia bondes nos
tempos de Ana) voltando das compras. O trânsito não permitia ao bonde fluir (já havia
trânsito intenso nos espaços urbanos percorridos por Ana). Pela janela ela avista um
homem cego mascando chicles. “Inclinada, olhava o cego profundamente, como se
olha o que não nos vê” (p.21). De repente, Ana dá-se conta de sua insuportável
piedade para com o cego. Esse sentimento através do qual podemos possuir o outro,
conhecê-lo, oferecer-lhe toda nossa boa intenção, nossa soberania e nosso orgulho.
Como diz Mèlich (1998), “a consciência intencional não pode entrar em relação com o
outro sem que este acabe reduzido a cinzas” (p. 171).
Mas ali, naquele bonde, Ana sufocava com sua piedade e respirava ofegante.
Sua vida estava tão bem apaziguada; cuidava tanto dela. Porém, “um cego mascando
goma despedaçava tudo isso” (Lispector, 1998, p.23). Através da piedade, à Ana
aparecia uma vida repleta de náuseas.
Ana, por um instante, atende ao chamado do cego. Desse outro que não a vê,
que não se deixa compreender, que escapa no movimento do bonde. Ao olhá-lo, é sua
intencionalidade para com o cego que se torna repentinamente insuportável. A ela
restou uma carícia1 provocada pela simples presença do outro, seu sussurro que
desliza a pele. Ao atender o chamado do cego, Ana desce do bonde e entra, quase
sem querer, em um Jardim Botânico (uma parada que não era a sua e que nunca
havia prestado atenção, pois sempre descia antes para voltar à sua casa).
O Jardim Botânico, como um parque de proteção ambiental (uma Unidade de
Conservação), possui uma língua e exige que através dela aquele que chega solicite
hospitalidade (Guimarães, 2005). Lá, há coisas para serem vistas, compreendidas e
explicadas. Porém, atônita, Ana, que seguia o chamado do cego, simplesmente entra.
1 “A carícia, da qual estou falando aqui é tímida e frágil, em qualquer momento se pode romper ou quebrar. (...) É uma carícia que não toca nada nem ninguém, que simplesmente sussurra, desliza sobre uma pele, sentindo a presença do outro, que é uma ausência, que é um vazio, que é o grande paradoxo da imanência e da transcendência ao mesmo tempo” (Mèlich, 1998, p. 176).
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Não sendo vista, não sabendo, muito menos, onde exatamente se encontrava, não
fazendo parte de qualquer atividade pedagógica de educação ambiental, Ana,
simplesmente, entra em silêncio em um Jardim Botânico.
“Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um
mundo faiscante e sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas” (Lispector,
1998, p.25). De repente, aquelas árvores, frutas, cores, pássaros mostravam-lhe a
crueza tranqüila do mundo. O Jardim Botânico assustadoramente lhe revelava que
pertencia “à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar à sua misericórdia
violenta?” (p.27). Um cego a levou ao que de pior existia nela mesma.
O que faria se sempre seguisse ao chamado do cego? “O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias?” (p.29). Que pedagogia foi oferecida pelo Jardim
Botânico? E se o Jardim Botânico também estivesse na sua cozinha? Formigas,
verduras, mariposas, ácaros, besouros; na cozinha há uma vida silenciosa, lenta e
insistente. E se o Jardim Botânico (ou, agora, também, a cozinha) sempre capturasse
e expusesse suas detestáveis e insuportáveis piedades?
A história de Ana nos permite perguntar: como praticar educação ambiental sem
aniquilar o outro, sem instaurar um único caminho para ações, apropriações e
preenchimentos de um determinado território: um parque, um jardim, um bosque, uma
praça? Esses são lugares comumente convertidos em espaçamentos interessantes
para trabalhos não-formais de educação ambiental. Aliás, por que teimamos em
“naturalizar” o ambiente no qual se pratica educação ambiental? Ou seja, por que
quase não conseguimos praticar educação ambiental no centro de uma metrópole
urbana?
Que educação ambiental poderia ser produzida se acolhêssemos o que nos
propõe Marcos Reigota (2002): providenciar um banquete antropofágico em espaços
“onde se possam ‘deglutir’ o máximo possível, apresentar e desenvolver suas
alternativas, sintonizadas com a sua época, exigindo e construindo uma sociedade
mais justa, equânime e ecologicamente sustentável” (p. 60)?
Nesse ensaio contaremos um pouco sobre uma pesquisa em educação
ambiental que produzimos; seus caminhos e descaminhos singulares – impossíveis de
serem reaplicados em outro lugar, com outros sujeitos; mas uma experiência de
construção investigativa que pode nutrir inventividades outras. Ela diz respeito a um
parque, que como o Jardim Botânico do conto está repleto de silêncios, de
estranhamentos, de cores e de sons. Da crueza aparente do espaço, vão se
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configurando imagens, caminhos, descaminhos, mesclas e reconfigurações de modos
de ver e de narrar deglutidos por uma orquestração política: se deseja conseguir ver
um espaço tido como “desértico” (trata-se de uma Unidade de Conservação tomada,
pelos moradores do seu entorno, como abandonada) com outros olhos.
Através de nossa pesquisa em educação ambiental, convidamos os moradores a
entrarem no parque. Com isso, desejávamos, tal como o Jardim Botânico produziu em
Ana, não modificar (com nossa prática) o próprio parque (sabíamos que não
poderíamos retirá-lo, repentinamente, de sua condição narrativa de “deserto”), mas
permitir que os sujeitos que o visitavam pudessem deslocar a si mesmos (e, com isso,
quem sabe, protagonizar outras narrativas e imagens sobre o parque). Ao final o que
efetivamente podemos dizer que conseguimos foi provocar intensos deslocamentos
em nós mesmos!
Descaminhos de uma pesquisa em educação ambiental
Na pesquisa “Meio Ambiente e Fotografia: pedagogias em um Parque urbano”
são relatadas experiências de um trabalho de educação ambiental realizado com os
moradores do entorno de uma Unidade de Conservação, no qual a pesquisadora
(co-autora desse artigo) vai tecendo e destecendo os caminhos da pesquisa a partir
das diferentes perguntas e situações que surgem ao longo das experiências de campo
e de leituras teóricas do campo dos estudos culturais e dos entornos pós-modernos da
educação ambiental brasileira.
Assim, a linguagem subjetiva em forma de narrativa do texto da pesquisa e a
constante construção e desconstrução das metodologias arquiteta uma história, que
busca trazer para o campo científico (trata-se da produção de um trabalho acadêmico)
as experiências, sensações e aprendizagens da pesquisadora. Num constante
caminhar em diferentes trilhas e alternativas para o direcionamento da investigação.
Dessa maneira, a forma de conduzir o trabalho se caracterizou como uma
pesquisa “que se propõe a transformar e transforma-se na relação” que se
estabeleceu entre pesquisadora e os sujeitos da investigação (Wunder et al, 2007, p.
70); que tentou “devorar” a arena de significados com a qual se trabalhou e assim
deixou-se transformar, à medida que novas perguntas surgiram das vivências do
trabalho.
Essa pesquisa, portanto, seguiu caminhos pouco trilhados, construiu-se sobre
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“bases móveis” que podiam ser alternadas e alteradas em sintonia com os desejos
políticos postos em circulação pela pesquisadora: queria-se potencializar aos
moradores do entorno do parque outros olhares, imagens e narrativas, para além de
uma escritura do abandono do parque (produção hegemônica circulante entre os
sujeitos enredados à pesquisa). Portanto, desde o princípio, o trabalho se propôs
diferente de uma educação ambiental que busca comumente estabelecer uma relação
“correta” das pessoas com o ambiente em que vivem, desconsiderando assim as
multiplicidades de relações em jogo naquele lugar. Buscou-se então com o trabalho
tentar aproximar-se de uma educação ambiental que:
“(...) não aceita passivamente andar pelos caminhos já cansativamente trilhados.
Não anda a procura de mapas seguros feitos com tintas eternas. Antes, pelo
contrário, aceita o desafio pós-moderno de fazer o mapa durante o caminho.
Aceita partir para o mar revolto dos tempos atuais apenas com o rascunho nas
mãos” (Barcelos e Silva, 2007, p. 144).
Com essa vontade de transformação o trabalho foi empreendido. Assim, de
setembro de 2007 a junho de 2008, a pesquisa foi construída no entorno e no interior
do Parque Ecológico Municipal de Palhoça, Estado de Santa Catarina, Brasil. Este
parque, situado no centro do município de Palhoça2, é fortemente pressionado pela
urbanização crescente e, desde a sua criação em 1996, encontra-se efetivamente
abandonado pelas autoridades responsáveis por sua manutenção (fato que, a nosso
ver, fortaleceu as imagens, narrativas e olhares de abandono tecidos pelos moradores
do seu entorno).
Os moradores da rua que se finaliza na entrada do parque, pareciam vê-lo (em
nossas primeiras entrevistas) como uma ameaça à segurança deles próprios, pois,
através de suas falas, todo o conjunto de freqüentadores do local foi instituído como
“estranhos”. Estes iam ao parque (na ficção narrativa dos moradores) para cometer
atos ilícitos como contrabandear produtos, consumir drogas, prostituir-se. Além disso,
a área do parque é praticamente toda constituída de um fragmento de manguezal, que
muitas vezes é visto como área de menor importância, um ambiente inóspito,
principalmente pela sua aparência pantanosa e pelo cheiro proveniente da grande
decomposição da matéria orgânica e da ciclagem de nutrientes presentes nesse
ecossistema. Dessa maneira, repetidas vezes os moradores da rua que desemboca
2O Município de Palhoça está situado proximamente ao município de Florianópolis – capital do Estado de Santa Catarina. O Estado pertence à região Sul do Brasil.
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no parque fizeram mobilizações para o fechamento do mesmo (para a sua destituição,
definitiva, de seu estado desértico repleto de “estranhos”).
A pesquisadora, bióloga, também uma moradora das vizinhanças do parque, o
enxergava, certamente, de outras maneiras, mirando outras características do lugar:
sua beleza, sua importância ecológica, sua potencialidade como área de lazer. Assim,
via nestes conflitos a necessidade de uma intervenção que possibilitasse que esses
moradores focassem o local com outros olhares, construíssem outras imagens,
tecessem diferentes narrativas, que não aquelas com os quais já estavam
acostumados a repetir incansavelmente – o parque sujo, abandonado, mal-cheiroso e
repleto de “estranhos”. Através de uma prática de educação ambiental, buscaram-se,
enfim, maneiras que possibilitassem que os moradores enxergassem o parque de
outros modos.
Contudo, não se pretendia com o trabalho que o olhar da pesquisadora, que é
um olhar maravilhado pelo lugar, fosse uma rota única para a construção de imagens,
olhares e narrativas. Como lembra Guimarães (2006),
“(...) os modos como enxergamos e nos relacionamos com a natureza [e o
ambiente] são frutos do momento histórico em que vivemos. Muitas vezes, não
percebemos que os nossos atos, as maneiras de narrar acontecimentos, os
modos de vermos a nós mesmos e aos outros, tudo isso, são negociações que
vamos estabelecendo diariamente com os significados que nos interpelam
através da cultura” (p. 7).
E estamos entendendo cultura de um modo ampliado, ou seja, não mais “como
resultado de um longo processo de elaboração, sofisticação e erudição (...), mas sim
como um processo ágil de deglutição cotidiana de inúmeras referências” (Reigota,
1999, p. 26-27). Partindo deste pressuposto, a pesquisa queria se afastar da possível
formação de uma dicotomia, “olhares do bem e do mal” em relação ao parque, que
poderia ser gerada, quem sabe, a partir de intervenções tradicionais de educação
ambiental (na qual já se iria a campo com um protocolo determinado e fixo de
intenções). A pesquisadora pretendia potencializar uma reflexão sobre as imagens e
as narrativas que os próprios moradores teceriam sobre o parque. Como considera
Barcelos (2005), é importante trazer para a educação ambiental atual a “discussão das
questões sociais, políticas, econômicas e culturais” e assim, com este trabalho, estar
aceitando “o desafio antropofágico de relacionar-se com o outro desde que esse outro
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não tenha a dominação e o aniquilamento cultural como premissa”.
Desse modo, foi intenção do trabalho, desde o princípio, gerar olhares, imagens
e narrativas diversos, que entrelaçassem as da pesquisadora com as das pessoas que
cotidianamente relacionavam-se com o parque (já que são sujeitos que vivem muito
próximos ao local). Com isso o objetivo principal de pesquisa configurou-se em torno
da seguinte questão: que visões os moradores que narram o parque negativamente
poderiam construir se fossem levados a conhecê-lo de outros modos, que não aquele
ao qual já estavam acostumados? Enfim, a pergunta que passou a nos atormentar foi:
será que se os moradores pudessem ser levados a criar outras imagens do local, eles,
efetivamente, deslocariam a visão negativa que parecia estar tão arraigada nos modos
como enunciavam o parque? Para Carvalho (2004),
“(...) as nossas idéias ou conceitos organizam o mundo, tornando-o inteligível e
familiar. São como lentes que nos fazem ver isso e não aquilo e nos guiam em
meio à enorme complexidade e imprevisibilidade da vida. Acontece que, quando
usamos óculos por muito tempo, a lente acaba fazendo parte de nossa visão a
ponto de esquecermos que ela continua lá, entre nós e o que vemos, entre os
olhos e a paisagem” (p. 64).
Assim, é provável que os moradores tenham deixado (como dito acima) que
lentes, representadas pelas situações que os afligiam em relação ao parque,
passassem a fazer parte de seus próprios olhos. Mas, como fazer com que os
moradores vissem o parque para além de um espaço “desértico” repleto de
“problemas”, além da visão comumente negativa, além daquelas lentes já tão
cotidianas? Assim, pensamos: se a intenção é provocar deslocamentos nas imagens
que os moradores têm do parque, quem sabe, então, possamos convidá-los a produzir
imagens fotográficas do local.
A partir desta reflexão, de que as imagens fotográficas talvez fossem uma
maneira de realizar um deslocamento nos olhares destes moradores, ampliando seus
focos e abrindo espaço para novas visões, porque não inserir na frente destes olhares,
lentes? Mas não aquelas lentes tão empoeiradas pelo tempo e pelas situações
repetitivas que os levavam a ter uma única possibilidade de foco e sim lentes pouco
transparentes, que embaralhassem significações e provocassem “teceduras de relatos
e reflexões sob o crivo do testemunho vivo, todos alinhavados pela função de
enxergar” (Ribas, 2003, p. 70), e que gravassem estas imagens, para que pudessem
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ser novamente narradas e com isso, que outras narrativas sobre o parque pudessem
ser contadas.
Assim, estimulada por algumas leituras, a pesquisadora passou a considerar a
fotografia como um meio de propiciar aos sujeitos lançarem outros olhares para o
parque, já que a fotografia, como dito acima, é algo simbólico e assim capaz de
traduzir relações culturais e até mesmo construí-las, ao mostrar sentimentos e
expressões que dispensam, algumas vezes, palavras.
Deste modo, utilizou-se a fotografia como uma pedagogia para a criação de
novas narrativas e olhares sobre o parque. Por conseqüência, a pergunta desta
pesquisa foi ligeiramente modificada para: que imagens os moradores que narram o
parque negativamente poderiam construir se fossem convidados a percorrer e
fotografar aquele espaço?
A partir desta pergunta, como efetivar tal orquestração política? Assim, para
buscar resposta a esta indagação que, por fim, direcionou a construção desta
pesquisa, uma das etapas da investigação consistiu em levar os moradores em grupos
até a sede do parque para um “passeio” (já que apesar de morarem próximos não
visitavam aquele lugar “desértico”, abandonado e repleto de “estranhos”) para que
desta maneira pudessem registrar suas visões por meio de fotografias.
Para a realização desta atividade, uma inspiração fílmica foi o documentário
intitulado: “Nascidos em bordéis”, que narra o cotidiano de crianças nascidas em
bordéis na Índia. No filme, as crianças são levadas, por uma estrangeira, a registrar
fotograficamente seu dia a dia e, através das imagens construídas, pensar sobre o
mundo e projetá-lo para além daqueles espaçamentos cotidianos repletos de
significações, de sentimentos e de existências.
Assim, inspirados neste vibrante documentário, convidamos os moradores a irem
ao parque e, com uma máquina fotográfica em punho, a pesquisadora lhes concedeu
o seguinte convite: “em pelo menos duas fotografias, registre a imagem que você tem
do parque.”
O passeio dos moradores junto com a pesquisadora pelo parque não teve um
percurso pré-determinado. Esta aparente liberdade teve a intenção de deixar que o
trajeto parecesse um “passeio” e não uma “tarefa” – uma obrigação de estar ali – e
também porque era interessante para a pesquisadora que os moradores a guiassem
pelos lugares que quisessem mostrar. Assim, durante a caminhada os entrevistados
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fotografaram o parque e contaram histórias sobre determinada cena, determinado
ambiente, determinada planta. Desta maneira, durante todo o passeio falaram sobre a
sua relação com o parque, uma conversa em que a pesquisadora mais ouviu do que
falou, pois ficava escutando cada detalhe novo, cada lembrança que surgia e se
enredava naquela teia de falas que se formava. Estas falas foram gravadas
registrando esses diálogos que depois foram transcritos. Inicialmente, a gravação dos
arquivos de áudio das saídas não havia sido planejada, porém, à medida que estes
diálogos foram transcritos, mostraram-se muito interessantes, tal a riqueza de
narrativas que foram coletadas. Tanto que essas conversas constituíram-se grandes
fontes de falas e olhares.
Assim, a partir das imagens construídas pelos moradores, surgiram outras
questões que, juntamente com a pergunta anterior, constituíram, finalmente, o eixo
principal do trabalho (que o leitor está vendo como ele vai sendo paulatinamente
modificado, tecido sem caminhos seguros, mas como descaminhos instigantes a cada
passo): “que imagens os moradores que narram o parque negativamente poderiam
construir se fossem levados a percorrer e fotografar aquele espaço?” E mais: “como
esses mesmos sujeitos narram suas fotografias?” “Tais narrativas e imagens são
diferentes das que eles traçaram nos depoimentos que haviam sido coletados antes
da atividade?”
Dessa maneira, além do passeio ao parque para a produção das fotografias, a
outra etapa da pesquisa consistiu em solicitar a cada morador-fotógrafo que
escolhesse duas fotografias produzidas no passeio para a construção de uma
narrativa escrita. Foi requerido que eles contassem, por escrito, alguma história sobre
elas. Solicitou-se que essas histórias poderiam ser inclusive ficcionais, ou seja,
pensadas em um tempo presente, passado ou futuro. A única ressalva era que as
narrativas tivessem como cenário as imagens capturadas pelas duas fotografias
escolhidas.
As narrativas foram assim requisitadas por dois motivos: primeiramente,
acreditou-se que se os moradores criassem uma história sobre as imagens, ela viria
impregnada de seus valores, de suas idéias, e que essas poderiam vir apresentadas
de outras maneiras, que não aquela que já se estava acostumada a ver e ouvir: o
parque como lugar de abandono e de “estranhos”. Outro ponto – talvez o mais
importante – é que escrever impõe ao sujeito que ele reflita sobre o que escreve,
sobre seus pensamentos que pouco a pouco vão passando ao papel. Assim, a
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 101
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intenção era fazer com que os moradores pudessem medir as palavras, repensá-las.
Esta parte final da pesquisa teve como objetivo ter uma fonte documental (além
das imagens) para as análises sobre as visões dos moradores em relação ao parque.
Essas análises buscaram esmiuçá-las, porém, assim como em todo trabalho, a
investigação não buscou mostrar uma verdade única sobre a relação dos moradores
com o parque, mas sim as múltiplas possibilidades de imaginações e escrituras.
Ao final da investigação, imagens de várias ordens estavam dispostas à nossa
frente. Os textos escritos reforçaram, majoritariamente, os depoimentos recorrentes de
um parque distante, mas, agora, ao mesmo tempo tão próximo; “desértico”, mas ao
mesmo tempo tão repleto de marcas da infância daqueles sujeitos; abandonado, mas
ao mesmo tempo tão vibrantemente denso de verdes e de sonoridades; cheio de
“estranhos”, mas ao mesmo tempo estranhamente pouco ocupado pela sua
vizinhança, tão carente de espaçamentos de lazer, de convivências familiares mais
densas. Enfim; não podemos medir, efetivamente, os deslocamentos que as
fotografias e as escrituras provocaram naqueles sujeitos, mas sabemos que a
pesquisadora, tal como Ana quando se viu em um Jardim Botânico, não é mais a
mesma desde quando entrou pela primeira vez, quase sem querer, naquele parque,
como que se estivesse atendendo ao chamado de um cego.
Referências Bibliográficas
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educação ambiental antropofágica e pós-moderna. In A. M. Prevê, & G. Corrêa,
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102 GUIMARÃES E SANTOS
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ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS: DESCAMINHOS DE UMA PESQUISA EM EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Leandro Belinaso Guimarães PPGE/Universidade Federal de Santa Catarina
lebelinaso@uol.com.br
Juliana Evelyn dos Santos Universidade Federal de Santa Catarina
dot_ju@yahoo.com.br
Resumo
Este artigo busca refletir sobre uma experimentação singular de pesquisa em
educação ambiental. O objetivo central do texto é mostrar os descaminhos
metodológicos da investigação e seus modos intricados de construção, concernentes
aos desejos políticos dos autores. Não concedemos no artigo uma importância às
explicitações das articulações teóricas da pesquisa, que são, apenas, pinçadas e
marcadas sutilmente ao longo do texto. A investigação buscou inspiração em uma
educação ambiental pós-moderna, articulada teoricamente ao campo multifacetado e
contestado dos estudos culturais e pretendeu promover deslocamentos nos modos de
ver, narrar e pensar um parque urbano de proteção ambiental localizado na região
metropolitana de Florianópolis, Sul do Brasil. Tal local é comumente visto e narrado
como “desértico” e abandonado, como um lugar de “estranhos”, pelos moradores do
seu entorno, tal como evidenciamos em uma pesquisa preliminar em que colhemos
depoimentos desses sujeitos. Ao convidá-los a adentrar o parque e tirar fotografias do
mesmo, a pesquisa tentou provocar deslocamentos nesses modos recorrentes de ver
e narrar, buscando traçar por entre as imagens algumas linhas de fuga. Entre imagens
e deslocamentos pelo parque emergiram marcas de infância, projetos de futuro,
desejos de lazer, potencialidades diferenciais de convívio. Mais do que traçar
deslocamentos nos olhares e nas narrativas dos sujeitos, as quais nós não queríamos
controlar, instaurando um modo pretensamente nosso de ver, concluímos que a
experimentação provocou em nós mesmos, pesquisadores, uma diferença. Nem o
parque, nem nós permanecemos mais os mesmos.
92 GUIMARÃES E SANTOS
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Palavras-chave: Educação ambiental; Fotografia; Estudos culturais.
Abstract
This article intends to reflect about a singular experimentation in environmental
education. The central purpose of the text is to show the investigation methodological
off ways and their construction forms, related to the authors’ political wishes. In the
article, we do not grant importance to the explanation of the theoretical bases. They
are, only, tenuously indicated throughout the text. The investigation was inspired in a
post-modern environmental education, theoretically articulated at the contested,
multifaceted field of the cultural studies. In addition to that, the text intends to promote
dislocations in the forms of viewing, narrating and thinking about a urban park
environmentally protected in the metropolitan region of Florianópolis, South of Brazil.
This place is commonly seen and referred to as ‘desertic’, ‘abandoned’, a ‘weird
people’s place’ by neighborhood residents, as we show clearly in a preliminary reserch
in which we get testimonies of these subjetcs. When they were invited to enter the park
and take photos, the reserch tried to provoke changes in the usual manners of seeing
and relating. By doing that, we tried to delineate through the images some different
views. Through images and displaces across the park, childhood memories emerged,
future projects, leisure wishes, difference social contacts. More than provoking
displaces in the views and narratives of the subjetcs, in which we did not want to
control and/or to impose our manner of seeing, we concluded that the experimentation
provoked a difference. Neither we, nor the park stayed the same.
Keywords: Environmental education; Photographs; Cultural studies.
Em um belo conto de Clarice Lispector (1998), a personagem principal, Ana,
chega, quase sem querer, a um Jardim Botânico. No conto, este espaço tão comum
em trabalhos de educação ambiental (chamados de não-formais, mas que atendem
alunos do ensino escolar formal), não estava composto para ser compreendido,
explicado, ensinado. Havia, acompanhando os andares de Ana por aquele enigmático
Jardim, silêncios, sons, espantos, estranhamentos. Quem não pergunta sobre aquele
estranho lugar, mas sobre essa forasteira figura que atende pelo nome de Ana?
Educadores ambientais construiriam suas indagações focando o Jardim Botânico ou a
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 93
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vida de Ana que caminhava, repentinamente, por aquele espaço?
Os perigos nos dias de Ana estavam marcados por certa hora da tarde. Aqueles
momentos em que tudo em sua casa já estava limpo, encaminhado e organizado.
“Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se” (Lispector, 1998, p.19). Sua
precaução era cuidar dessa hora perigosa da tarde. Temos também uma hora
perigosa da tarde em nossas vidas? Ela se reverbera ou permanece guardada quando
estamos praticando educação ambiental?
Em um dia qualquer, Ana estava sentada em um bonde (ainda havia bondes nos
tempos de Ana) voltando das compras. O trânsito não permitia ao bonde fluir (já havia
trânsito intenso nos espaços urbanos percorridos por Ana). Pela janela ela avista um
homem cego mascando chicles. “Inclinada, olhava o cego profundamente, como se
olha o que não nos vê” (p.21). De repente, Ana dá-se conta de sua insuportável
piedade para com o cego. Esse sentimento através do qual podemos possuir o outro,
conhecê-lo, oferecer-lhe toda nossa boa intenção, nossa soberania e nosso orgulho.
Como diz Mèlich (1998), “a consciência intencional não pode entrar em relação com o
outro sem que este acabe reduzido a cinzas” (p. 171).
Mas ali, naquele bonde, Ana sufocava com sua piedade e respirava ofegante.
Sua vida estava tão bem apaziguada; cuidava tanto dela. Porém, “um cego mascando
goma despedaçava tudo isso” (Lispector, 1998, p.23). Através da piedade, à Ana
aparecia uma vida repleta de náuseas.
Ana, por um instante, atende ao chamado do cego. Desse outro que não a vê,
que não se deixa compreender, que escapa no movimento do bonde. Ao olhá-lo, é sua
intencionalidade para com o cego que se torna repentinamente insuportável. A ela
restou uma carícia1 provocada pela simples presença do outro, seu sussurro que
desliza a pele. Ao atender o chamado do cego, Ana desce do bonde e entra, quase
sem querer, em um Jardim Botânico (uma parada que não era a sua e que nunca
havia prestado atenção, pois sempre descia antes para voltar à sua casa).
O Jardim Botânico, como um parque de proteção ambiental (uma Unidade de
Conservação), possui uma língua e exige que através dela aquele que chega solicite
hospitalidade (Guimarães, 2005). Lá, há coisas para serem vistas, compreendidas e
explicadas. Porém, atônita, Ana, que seguia o chamado do cego, simplesmente entra.
1 “A carícia, da qual estou falando aqui é tímida e frágil, em qualquer momento se pode romper ou quebrar. (...) É uma carícia que não toca nada nem ninguém, que simplesmente sussurra, desliza sobre uma pele, sentindo a presença do outro, que é uma ausência, que é um vazio, que é o grande paradoxo da imanência e da transcendência ao mesmo tempo” (Mèlich, 1998, p. 176).
94 GUIMARÃES E SANTOS
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Não sendo vista, não sabendo, muito menos, onde exatamente se encontrava, não
fazendo parte de qualquer atividade pedagógica de educação ambiental, Ana,
simplesmente, entra em silêncio em um Jardim Botânico.
“Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um
mundo faiscante e sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas” (Lispector,
1998, p.25). De repente, aquelas árvores, frutas, cores, pássaros mostravam-lhe a
crueza tranqüila do mundo. O Jardim Botânico assustadoramente lhe revelava que
pertencia “à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar à sua misericórdia
violenta?” (p.27). Um cego a levou ao que de pior existia nela mesma.
O que faria se sempre seguisse ao chamado do cego? “O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias?” (p.29). Que pedagogia foi oferecida pelo Jardim
Botânico? E se o Jardim Botânico também estivesse na sua cozinha? Formigas,
verduras, mariposas, ácaros, besouros; na cozinha há uma vida silenciosa, lenta e
insistente. E se o Jardim Botânico (ou, agora, também, a cozinha) sempre capturasse
e expusesse suas detestáveis e insuportáveis piedades?
A história de Ana nos permite perguntar: como praticar educação ambiental sem
aniquilar o outro, sem instaurar um único caminho para ações, apropriações e
preenchimentos de um determinado território: um parque, um jardim, um bosque, uma
praça? Esses são lugares comumente convertidos em espaçamentos interessantes
para trabalhos não-formais de educação ambiental. Aliás, por que teimamos em
“naturalizar” o ambiente no qual se pratica educação ambiental? Ou seja, por que
quase não conseguimos praticar educação ambiental no centro de uma metrópole
urbana?
Que educação ambiental poderia ser produzida se acolhêssemos o que nos
propõe Marcos Reigota (2002): providenciar um banquete antropofágico em espaços
“onde se possam ‘deglutir’ o máximo possível, apresentar e desenvolver suas
alternativas, sintonizadas com a sua época, exigindo e construindo uma sociedade
mais justa, equânime e ecologicamente sustentável” (p. 60)?
Nesse ensaio contaremos um pouco sobre uma pesquisa em educação
ambiental que produzimos; seus caminhos e descaminhos singulares – impossíveis de
serem reaplicados em outro lugar, com outros sujeitos; mas uma experiência de
construção investigativa que pode nutrir inventividades outras. Ela diz respeito a um
parque, que como o Jardim Botânico do conto está repleto de silêncios, de
estranhamentos, de cores e de sons. Da crueza aparente do espaço, vão se
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 95
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configurando imagens, caminhos, descaminhos, mesclas e reconfigurações de modos
de ver e de narrar deglutidos por uma orquestração política: se deseja conseguir ver
um espaço tido como “desértico” (trata-se de uma Unidade de Conservação tomada,
pelos moradores do seu entorno, como abandonada) com outros olhos.
Através de nossa pesquisa em educação ambiental, convidamos os moradores a
entrarem no parque. Com isso, desejávamos, tal como o Jardim Botânico produziu em
Ana, não modificar (com nossa prática) o próprio parque (sabíamos que não
poderíamos retirá-lo, repentinamente, de sua condição narrativa de “deserto”), mas
permitir que os sujeitos que o visitavam pudessem deslocar a si mesmos (e, com isso,
quem sabe, protagonizar outras narrativas e imagens sobre o parque). Ao final o que
efetivamente podemos dizer que conseguimos foi provocar intensos deslocamentos
em nós mesmos!
Descaminhos de uma pesquisa em educação ambiental
Na pesquisa “Meio Ambiente e Fotografia: pedagogias em um Parque urbano”
são relatadas experiências de um trabalho de educação ambiental realizado com os
moradores do entorno de uma Unidade de Conservação, no qual a pesquisadora
(co-autora desse artigo) vai tecendo e destecendo os caminhos da pesquisa a partir
das diferentes perguntas e situações que surgem ao longo das experiências de campo
e de leituras teóricas do campo dos estudos culturais e dos entornos pós-modernos da
educação ambiental brasileira.
Assim, a linguagem subjetiva em forma de narrativa do texto da pesquisa e a
constante construção e desconstrução das metodologias arquiteta uma história, que
busca trazer para o campo científico (trata-se da produção de um trabalho acadêmico)
as experiências, sensações e aprendizagens da pesquisadora. Num constante
caminhar em diferentes trilhas e alternativas para o direcionamento da investigação.
Dessa maneira, a forma de conduzir o trabalho se caracterizou como uma
pesquisa “que se propõe a transformar e transforma-se na relação” que se
estabeleceu entre pesquisadora e os sujeitos da investigação (Wunder et al, 2007, p.
70); que tentou “devorar” a arena de significados com a qual se trabalhou e assim
deixou-se transformar, à medida que novas perguntas surgiram das vivências do
trabalho.
Essa pesquisa, portanto, seguiu caminhos pouco trilhados, construiu-se sobre
96 GUIMARÃES E SANTOS
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“bases móveis” que podiam ser alternadas e alteradas em sintonia com os desejos
políticos postos em circulação pela pesquisadora: queria-se potencializar aos
moradores do entorno do parque outros olhares, imagens e narrativas, para além de
uma escritura do abandono do parque (produção hegemônica circulante entre os
sujeitos enredados à pesquisa). Portanto, desde o princípio, o trabalho se propôs
diferente de uma educação ambiental que busca comumente estabelecer uma relação
“correta” das pessoas com o ambiente em que vivem, desconsiderando assim as
multiplicidades de relações em jogo naquele lugar. Buscou-se então com o trabalho
tentar aproximar-se de uma educação ambiental que:
“(...) não aceita passivamente andar pelos caminhos já cansativamente trilhados.
Não anda a procura de mapas seguros feitos com tintas eternas. Antes, pelo
contrário, aceita o desafio pós-moderno de fazer o mapa durante o caminho.
Aceita partir para o mar revolto dos tempos atuais apenas com o rascunho nas
mãos” (Barcelos e Silva, 2007, p. 144).
Com essa vontade de transformação o trabalho foi empreendido. Assim, de
setembro de 2007 a junho de 2008, a pesquisa foi construída no entorno e no interior
do Parque Ecológico Municipal de Palhoça, Estado de Santa Catarina, Brasil. Este
parque, situado no centro do município de Palhoça2, é fortemente pressionado pela
urbanização crescente e, desde a sua criação em 1996, encontra-se efetivamente
abandonado pelas autoridades responsáveis por sua manutenção (fato que, a nosso
ver, fortaleceu as imagens, narrativas e olhares de abandono tecidos pelos moradores
do seu entorno).
Os moradores da rua que se finaliza na entrada do parque, pareciam vê-lo (em
nossas primeiras entrevistas) como uma ameaça à segurança deles próprios, pois,
através de suas falas, todo o conjunto de freqüentadores do local foi instituído como
“estranhos”. Estes iam ao parque (na ficção narrativa dos moradores) para cometer
atos ilícitos como contrabandear produtos, consumir drogas, prostituir-se. Além disso,
a área do parque é praticamente toda constituída de um fragmento de manguezal, que
muitas vezes é visto como área de menor importância, um ambiente inóspito,
principalmente pela sua aparência pantanosa e pelo cheiro proveniente da grande
decomposição da matéria orgânica e da ciclagem de nutrientes presentes nesse
ecossistema. Dessa maneira, repetidas vezes os moradores da rua que desemboca
2O Município de Palhoça está situado proximamente ao município de Florianópolis – capital do Estado de Santa Catarina. O Estado pertence à região Sul do Brasil.
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 97
http://www.eses.pt/interaccoes
no parque fizeram mobilizações para o fechamento do mesmo (para a sua destituição,
definitiva, de seu estado desértico repleto de “estranhos”).
A pesquisadora, bióloga, também uma moradora das vizinhanças do parque, o
enxergava, certamente, de outras maneiras, mirando outras características do lugar:
sua beleza, sua importância ecológica, sua potencialidade como área de lazer. Assim,
via nestes conflitos a necessidade de uma intervenção que possibilitasse que esses
moradores focassem o local com outros olhares, construíssem outras imagens,
tecessem diferentes narrativas, que não aquelas com os quais já estavam
acostumados a repetir incansavelmente – o parque sujo, abandonado, mal-cheiroso e
repleto de “estranhos”. Através de uma prática de educação ambiental, buscaram-se,
enfim, maneiras que possibilitassem que os moradores enxergassem o parque de
outros modos.
Contudo, não se pretendia com o trabalho que o olhar da pesquisadora, que é
um olhar maravilhado pelo lugar, fosse uma rota única para a construção de imagens,
olhares e narrativas. Como lembra Guimarães (2006),
“(...) os modos como enxergamos e nos relacionamos com a natureza [e o
ambiente] são frutos do momento histórico em que vivemos. Muitas vezes, não
percebemos que os nossos atos, as maneiras de narrar acontecimentos, os
modos de vermos a nós mesmos e aos outros, tudo isso, são negociações que
vamos estabelecendo diariamente com os significados que nos interpelam
através da cultura” (p. 7).
E estamos entendendo cultura de um modo ampliado, ou seja, não mais “como
resultado de um longo processo de elaboração, sofisticação e erudição (...), mas sim
como um processo ágil de deglutição cotidiana de inúmeras referências” (Reigota,
1999, p. 26-27). Partindo deste pressuposto, a pesquisa queria se afastar da possível
formação de uma dicotomia, “olhares do bem e do mal” em relação ao parque, que
poderia ser gerada, quem sabe, a partir de intervenções tradicionais de educação
ambiental (na qual já se iria a campo com um protocolo determinado e fixo de
intenções). A pesquisadora pretendia potencializar uma reflexão sobre as imagens e
as narrativas que os próprios moradores teceriam sobre o parque. Como considera
Barcelos (2005), é importante trazer para a educação ambiental atual a “discussão das
questões sociais, políticas, econômicas e culturais” e assim, com este trabalho, estar
aceitando “o desafio antropofágico de relacionar-se com o outro desde que esse outro
98 GUIMARÃES E SANTOS
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não tenha a dominação e o aniquilamento cultural como premissa”.
Desse modo, foi intenção do trabalho, desde o princípio, gerar olhares, imagens
e narrativas diversos, que entrelaçassem as da pesquisadora com as das pessoas que
cotidianamente relacionavam-se com o parque (já que são sujeitos que vivem muito
próximos ao local). Com isso o objetivo principal de pesquisa configurou-se em torno
da seguinte questão: que visões os moradores que narram o parque negativamente
poderiam construir se fossem levados a conhecê-lo de outros modos, que não aquele
ao qual já estavam acostumados? Enfim, a pergunta que passou a nos atormentar foi:
será que se os moradores pudessem ser levados a criar outras imagens do local, eles,
efetivamente, deslocariam a visão negativa que parecia estar tão arraigada nos modos
como enunciavam o parque? Para Carvalho (2004),
“(...) as nossas idéias ou conceitos organizam o mundo, tornando-o inteligível e
familiar. São como lentes que nos fazem ver isso e não aquilo e nos guiam em
meio à enorme complexidade e imprevisibilidade da vida. Acontece que, quando
usamos óculos por muito tempo, a lente acaba fazendo parte de nossa visão a
ponto de esquecermos que ela continua lá, entre nós e o que vemos, entre os
olhos e a paisagem” (p. 64).
Assim, é provável que os moradores tenham deixado (como dito acima) que
lentes, representadas pelas situações que os afligiam em relação ao parque,
passassem a fazer parte de seus próprios olhos. Mas, como fazer com que os
moradores vissem o parque para além de um espaço “desértico” repleto de
“problemas”, além da visão comumente negativa, além daquelas lentes já tão
cotidianas? Assim, pensamos: se a intenção é provocar deslocamentos nas imagens
que os moradores têm do parque, quem sabe, então, possamos convidá-los a produzir
imagens fotográficas do local.
A partir desta reflexão, de que as imagens fotográficas talvez fossem uma
maneira de realizar um deslocamento nos olhares destes moradores, ampliando seus
focos e abrindo espaço para novas visões, porque não inserir na frente destes olhares,
lentes? Mas não aquelas lentes tão empoeiradas pelo tempo e pelas situações
repetitivas que os levavam a ter uma única possibilidade de foco e sim lentes pouco
transparentes, que embaralhassem significações e provocassem “teceduras de relatos
e reflexões sob o crivo do testemunho vivo, todos alinhavados pela função de
enxergar” (Ribas, 2003, p. 70), e que gravassem estas imagens, para que pudessem
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 99
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ser novamente narradas e com isso, que outras narrativas sobre o parque pudessem
ser contadas.
Assim, estimulada por algumas leituras, a pesquisadora passou a considerar a
fotografia como um meio de propiciar aos sujeitos lançarem outros olhares para o
parque, já que a fotografia, como dito acima, é algo simbólico e assim capaz de
traduzir relações culturais e até mesmo construí-las, ao mostrar sentimentos e
expressões que dispensam, algumas vezes, palavras.
Deste modo, utilizou-se a fotografia como uma pedagogia para a criação de
novas narrativas e olhares sobre o parque. Por conseqüência, a pergunta desta
pesquisa foi ligeiramente modificada para: que imagens os moradores que narram o
parque negativamente poderiam construir se fossem convidados a percorrer e
fotografar aquele espaço?
A partir desta pergunta, como efetivar tal orquestração política? Assim, para
buscar resposta a esta indagação que, por fim, direcionou a construção desta
pesquisa, uma das etapas da investigação consistiu em levar os moradores em grupos
até a sede do parque para um “passeio” (já que apesar de morarem próximos não
visitavam aquele lugar “desértico”, abandonado e repleto de “estranhos”) para que
desta maneira pudessem registrar suas visões por meio de fotografias.
Para a realização desta atividade, uma inspiração fílmica foi o documentário
intitulado: “Nascidos em bordéis”, que narra o cotidiano de crianças nascidas em
bordéis na Índia. No filme, as crianças são levadas, por uma estrangeira, a registrar
fotograficamente seu dia a dia e, através das imagens construídas, pensar sobre o
mundo e projetá-lo para além daqueles espaçamentos cotidianos repletos de
significações, de sentimentos e de existências.
Assim, inspirados neste vibrante documentário, convidamos os moradores a irem
ao parque e, com uma máquina fotográfica em punho, a pesquisadora lhes concedeu
o seguinte convite: “em pelo menos duas fotografias, registre a imagem que você tem
do parque.”
O passeio dos moradores junto com a pesquisadora pelo parque não teve um
percurso pré-determinado. Esta aparente liberdade teve a intenção de deixar que o
trajeto parecesse um “passeio” e não uma “tarefa” – uma obrigação de estar ali – e
também porque era interessante para a pesquisadora que os moradores a guiassem
pelos lugares que quisessem mostrar. Assim, durante a caminhada os entrevistados
100 GUIMARÃES E SANTOS
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fotografaram o parque e contaram histórias sobre determinada cena, determinado
ambiente, determinada planta. Desta maneira, durante todo o passeio falaram sobre a
sua relação com o parque, uma conversa em que a pesquisadora mais ouviu do que
falou, pois ficava escutando cada detalhe novo, cada lembrança que surgia e se
enredava naquela teia de falas que se formava. Estas falas foram gravadas
registrando esses diálogos que depois foram transcritos. Inicialmente, a gravação dos
arquivos de áudio das saídas não havia sido planejada, porém, à medida que estes
diálogos foram transcritos, mostraram-se muito interessantes, tal a riqueza de
narrativas que foram coletadas. Tanto que essas conversas constituíram-se grandes
fontes de falas e olhares.
Assim, a partir das imagens construídas pelos moradores, surgiram outras
questões que, juntamente com a pergunta anterior, constituíram, finalmente, o eixo
principal do trabalho (que o leitor está vendo como ele vai sendo paulatinamente
modificado, tecido sem caminhos seguros, mas como descaminhos instigantes a cada
passo): “que imagens os moradores que narram o parque negativamente poderiam
construir se fossem levados a percorrer e fotografar aquele espaço?” E mais: “como
esses mesmos sujeitos narram suas fotografias?” “Tais narrativas e imagens são
diferentes das que eles traçaram nos depoimentos que haviam sido coletados antes
da atividade?”
Dessa maneira, além do passeio ao parque para a produção das fotografias, a
outra etapa da pesquisa consistiu em solicitar a cada morador-fotógrafo que
escolhesse duas fotografias produzidas no passeio para a construção de uma
narrativa escrita. Foi requerido que eles contassem, por escrito, alguma história sobre
elas. Solicitou-se que essas histórias poderiam ser inclusive ficcionais, ou seja,
pensadas em um tempo presente, passado ou futuro. A única ressalva era que as
narrativas tivessem como cenário as imagens capturadas pelas duas fotografias
escolhidas.
As narrativas foram assim requisitadas por dois motivos: primeiramente,
acreditou-se que se os moradores criassem uma história sobre as imagens, ela viria
impregnada de seus valores, de suas idéias, e que essas poderiam vir apresentadas
de outras maneiras, que não aquela que já se estava acostumada a ver e ouvir: o
parque como lugar de abandono e de “estranhos”. Outro ponto – talvez o mais
importante – é que escrever impõe ao sujeito que ele reflita sobre o que escreve,
sobre seus pensamentos que pouco a pouco vão passando ao papel. Assim, a
ENTRE IMAGENS E DESLOCAMENTOS 101
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intenção era fazer com que os moradores pudessem medir as palavras, repensá-las.
Esta parte final da pesquisa teve como objetivo ter uma fonte documental (além
das imagens) para as análises sobre as visões dos moradores em relação ao parque.
Essas análises buscaram esmiuçá-las, porém, assim como em todo trabalho, a
investigação não buscou mostrar uma verdade única sobre a relação dos moradores
com o parque, mas sim as múltiplas possibilidades de imaginações e escrituras.
Ao final da investigação, imagens de várias ordens estavam dispostas à nossa
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Barcelos, V. (2005). Antropofagia cultural e educação ambiental – contribuições à formação de professores(as). Anais da 28ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação, Caxambu. Disponível em:
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